O Espírito De Prata - Capítulo IX

Capítulo 9

Descida À Mansão Dos Mortos

Após retornar do Memorial, pouquíssimos progressos obtive na busca íntima que empreendi pela exumação do meu passado.

Já se haviam completado seis meses do dia em que Lucila me abriu, pela primeira vez, as portas da sua casa. Tempo demasiado longo para um hóspede que, até aquela data, tinha consumido quase duas décadas de sua vida na adversa condição de andarilho.

O trabalho na loja atuava, ao mesmo tempo, contra mim e a meu favor, pois, se, por um lado, ele me tomava praticamente todo o tempo, impedindo que eu pudesse caminhar à caça de resquícios da minha existência quando e como Elíseo Giardinni, por outro, ocupava-me a mente, equilibrando-a, estabilizando-a e resguardando-a de quaisquer perturbações.

Lucila jamais permitiu que eu dividisse com ela as despesas da casa. Dizia-me que eu devia guardar o dinheiro do meu salário, porque, sem dúvida alguma, eu precisaria dele tão logo recuperasse minha memória.

De certo modo, minha benfeitora não estava errada. No entanto, era-me bastante difícil guardar os rendimentos que eu recebia como pagamento pelo meu serviço.

O fato de não possuir documentos pessoais impossibilitava-me de abrir uma conta bancária. Por esta razão, posso afirmar que minha caderneta de poupança era a última gaveta do guarda-roupas.

O dinheiro de que eu dispunha já era suficiente para que eu deixasse a residência de minha protetora.

Passara-me inúmeras vezes pelo pensamento a ideia de deixar a casa de Lucila e retomar o projeto de dividir um quarto com o Tony Charlie. Todavia, sempre que eu me encontrava prestes a pôr em prática tal decisão, vinha-me à consciência a voz do meu amigo Giovane Graziotti a alertar-me sobre a profundidade dos laços que me uniam a Lucila.

Desconhecia a procedência de tais laços. Contudo, sabia que existiam. E foi justamente por isso que não tive coragem de me afastar da pessoa que me acolheu.

Era também coragem o elemento que me faltava para que eu pudesse comunicar a Lucila a descoberta por mim vivida em pleno Memorial. Afinal, seria praticamente impossível que alguém acreditasse em mim se eu simplesmente afirmasse que o mais anônimo de todos os anônimos andarilhos do município de Novo Empíreo era, na verdade, um artista famoso desaparecido e dado como morto há pouco mais de vinte anos, sem apresentar disso qualquer prova substancial.

O trabalho exaustivo de segunda a sábado, somado ao tédio sob a sombra do qual costumam nascer os dias de domingo, fazia-me aguardar ansiosamente a vinda de um feriado. Feriado que, enfim, chegava.

Era 2 de novembro. Dia de finados.

Jamais compreendi a necessidade de haver nos calendários uma data específica dedicada aos mortos. Parecia-me arbitrário que alguém determinasse a outrem o dia exato em que se deveria lembrar dos entes queridos cujo contrato na Terra se tinha encerrado.

Isto, porém, a ninguém importava. O importante era que, finalmente,havia chegado um feriado.

Naquele dia, acordamos e tomamos o café-da-manhã bem cedo.

Lucila tinha planos de ir ao cemitério visitar o túmulo do seu tio Márcio.

Ela me perguntou se eu gostaria de acompanhá-la.

Aceitei o convite sem pestanejar.

Demo-nos então as mãos e partimos rumo ao único cemitério existente em Novo Empíreo, o Jardim dos Pinheiros.

O túmulo de Márcio Krigher era um jazigo simples, desprovido de luxo.

Ornava-o, apenas, uma lápide em bronze contendo a foto do falecido empunhando seu vigoroso saxofone, uma inscrição que identificava o morto e um epitáfio que dizia:

“PELA JANELA DA MORTE, ABRE-SE A PORTA DA VIDA.”

Confesso que não consegui entender o epitáfio de Márcio Krigher, embora o houvesse achado uma bela frase.

As densas visões daquele jazigo, daquele retrato e daquela inscrição fizeram brotar em meus olhos uma fonte de lágrimas e uma profunda comoção em meu ser.

Meus pensamentos se mostraram agitados por um imenso turbilhão de imagens e sensações desordenadas que, aos poucos, se foram encaixando, até desenharem na minha mente um quadro bastante claro.

Vi-me sentado no banco do passageiro de um carro cujo modelo a recente lembrança não me ousou revelar.

Ao meu lado, na condição de motorista, estava um homem que, sem a menor sombra de dúvida, era o Márcio.

Chovia bastante.

Conversávamos distraidamente sobre o concerto da noite anterior.

Acabávamos de comentar um solo antológico executado por um companheiro nosso, quando, empurrados pela força da água, derrapamos na pista.

Márcio tentou frear o veículo. Os freios, porém, não lhe obedeciam.

O acidente era inevitável.

Nosso carro se aproximava gradativa e perigosamente de uma ribanceira.

Cheguei a ouvir o “Adeus!” de Márcio. Mas, depois, tudo virou abismo.

Minha estranha reação ante o túmulo de Márcio Krigher não pôde escapar à arguta percepção de Lucila que, sem meias palavras, me indagou:

“O que há com o senhor, Sr. Graziotti? O senhor, por um acaso, se lembrou de algo ao contemplar o túmulo do meu tio Márcio?”

Esforcei-me de modo sobreumano para suspender de meus lábios as palavras que os mesmos pretendiam proferir. No entanto, atendendo às ensurdecedoras instâncias de minha alma, não pude mais ocultar de minha protetora as impressões que me passavam pelo íntimo, as quais lhe transmiti dizendo:

“Sabe de uma coisa, Srta. Lucila? Os lampejos de memória que,de vez em quando, me acometem, cada vez mais, me têm convencido da pessoa que fui no passado.

Creio que Elíseo Giardinni não morreu no desastre automobilístico que sofreu.

Mais ainda estou certo de que Elíseo Giardinni sou eu.

No dia em que estivemos no Memorial, muita coisa ali me pareceu familiar.

Hoje, ao olhar para o túmulo do Márcio, vi apresentar-se a mim toda a cena do acidente que o matou e, de acordo com as minhas suspeitas, apenas desmemoriou Elíseo Giardinni.

A cada recordação que me ocorre, minhas suspeitas se confirmam. Todavia, além da senhorita, não quero que saibam da minha descoberta. Ainda não disponho de provas concretas que sejam capazes de atestar, perante outras pessoas, a minha identidade.”

Após ouvir-me com redobrada atenção, Lucila não me disse nada.

Silentes e a passos lentos, fizemos o caminho de volta do Jardim dos Pinheiros.

Já em sua casa, ela me dirigiu as seguintes palavras:

“Eu já suspeitava, ...ou melhor..., eu já sabia que o senhor era Elíseo Giardinni.

Vinha analisando seus lampejos de memória e percebia que todos tinham algo a ver com ele.

Sua aparência é idêntica à dele.

Sua voz se assemelha muito à dele.

Assim como ele, o senhor canta e toca o vibrafone e o contrabaixo.

As inflexões do seu assovio são iguais às do assovio de Elíseo Giardinni.

Foi por isso, inclusive, que levei o senhor até o Memorial.

Acreditei que, se desse de cara com tantos artigos alusivos a Elíseo Giardinni, o senhor se recordaria da sua, ...digamos..., vida passada. E, pelo que vejo, minha crença estava certa.

Meus parabéns, Sr. Graziotti! Ou seria Giardinni? O senhor começa a recobrar o seu passado! Fato que me deixa muito feliz!

Sinto-me como uma filha que, após lutar bastante por seu pai, começa a assistir à sua vitória!

Compreendo perfeitamente o seu temor e entendo que o senhor não queira revelar sua identidade a ninguém além de mim. Afinal, Elíseo Giardinni tem sido dado como morto há mais de duas décadas.

Continuarei a chamá-lo de “Sr. Graziotti”, embora muito me alegre saber que a mim se concedeu a enorme honra de hospedar, em minha própria casa, um ídolo meu.”

As palavras proferidas por minha benfeitora trouxeram-me segurança e tranqüilidade.

Na verdade, Lucila e eu inspirávamos confiança um ao outro. Confiança mútua semelhante à que penso haver entre pai e filha.

Hebane Lucácius