O Espírito De Prata - Capítulo VIII
Capítulo 8
Bem-Vindo Ao Santuário!
Se eu tivesse de resumir a um único adjetivo as impressões que senti acerca do passeio com Lucila, diria, simplesmente, que foi surpreendente. No entanto, como feita jamais me fora tal exigência, entretenho-me aqui a registrar em detalhes as coisas que mais me chamaram a atenção no referido episódio.
Partimos em meio a uma ensolarada tarde de domingo. Atravessamos quase toda a cidade a pé. Passamos pela loja, pela residência de Téo Dias, pela oficina do Lalo, pelo bar do brito, pela pensão onde morava o Tony Charlie e por muitos outros lugares que eu já conhecia dos meus tempos de andarilho. Até chegarmos a um amplo salão azul, em cuja fachada, lia-se a seguinte inscrição: “MEMORIAL ELÍSEO GIARDINNI”.
Confesso que, em princípio, não pude compreender muito bem as razões que conduziam Lucila a levar-me àquele lugar. Também não me era possível entender que estranhos motivos me faziam ignorar completamente aquele majestoso salão, se todos os cantos da cidade, mesmo os mais recônditos, já me haviam sido apresentados por meus outrora nômades passos.
Lucila e eu entramos de mãos dadas no salão, de cuja entrada, pendia uma bela moldura de ébano, a qual guardava, em seu interior, uma fotografia do artista que dava nome ao memorial.
Espantei-me, pois o tal se parecia bastante comigo.
Fomos avançando pelo espaço e, à medida que caminhávamos, novas fotografias em molduras de ébano podiam ser vistas. Todas, sem exceção, bastante parecidas comigo.
Uma das fotos, porém, atraiu-me sobremaneira a atenção.
Retratava exatamente a mesma cena que eu avistara em um dos meus últimos lampejos de memória.
Sentados à mesa de um bar idêntico ao do Brito, quatro possíveis amigos músicos e o artista. De pé, ao lado deles, um homem bastante parecido com aquele que eu identificara como Márcio Krigher e um casal formado por uma mulher que muito se assemelhava àquela que eu acreditara chamar-se Heloísa e um moço incrivelmente parecido com aquele que eu crera trazer consigo a alcunha de Téo Dias.
Acompanhava o retrato a seguinte legenda: “FOTOGRAFIA TIRADA NO BAR & RESTAURANTE ANTARES APÓS A ÚLTIMA APRESENTAÇÃO DO SEXTETO AUSTRAL. VEEM-SE, CENTADOS À MESA, O VOCALISTA ELÍSEO GIARDINNI E QUATRO COMPANHEIROS DE SEXTETO E, DE PÉ, AO SEU LADO, O SAXOFONISTA MÁRCIO KRIGHER ACOMPANHADO POR SUA IRMÃ HELOÍSA KRIGHER E PELO CONTRABAIXISTA TÉO DIAS.”.
A cena estava ali. Bem diante de mim. Perfeitamente retratada. Exatamente como eu a tinha visto.
Todas as coisas, finalmente, começavam a se encaixar. A justificativa que o Brito dava para me alimentar, o estranhamento de Téo Dias ao ver-me assoviando uma canção em frente à sua casa, a própria canção que eu assoviava naquele dia, o impulso que me fez chamar Lucila de Heloísa no instante em que nos encontramos pela primeira vez, a sensação que experimentei ao encontrar o vibrafone no porão, as lembranças de Lalo e Chico Ferrari, o sonho e a posterior intimidade com o contrabaixo cubano, as revelações das identidades de Téo Dias, Márcio Krigher e Heloísa Krigher durante um dos meus últimos lampejos de memória e a profunda impressão que me causou a narrativa de Lucila sobre o acidente que levou seu tio à morte.
A mim não restava mais qualquer dúvida. O artista homenageado naquele memorial era eu. Eu era Elíseo Giardinni e tinha sobrevivido milagrosamente ao acidente automobilístico que vitimara o tio de minha benfeitora.
Meus olhos encheram-se de lágrimas.
Lucila percebeu minha comoção e me perguntou se eu gostaria de continuar o passeio.
Respondi-lhe afirmativamente. Fato que a fez respirar aliviada.
Caminhamos lentamente pelo salão. Enquanto andávamos, sem que eu lhe houvesse dirigido indagação alguma, Lucila me dizia:
“A pedido de minha mãe, busquei a colaboração de alguns amigos e criei uma fundação.
A esta fundação coube a função de elaborar o projeto que deu origem a este memorial.
Cerca de cinco anos foram necessários para que o projeto pudesse sair do papel e o memorial, enfim, ficasse pronto.
Atualmente, a Prefeitura Municipal de Novo Empíreo é responsável pela administração do Memorial Elíseo Giardinni, uma vez que é ele o principal destino turístico da cidade.
Apenas no ano passado, cerca de dez mil pessoas vieram a Novo Empíreo unicamente com o objetivo de conhecerem um pouco da história do renomado cantor, vibrafonista e contrabaixista Elíseo Giardinni. Isto não é interessante?”
“Sim. É muito interessante! Mas, o que teria motivado sua mãe a pedir à senhorita que fundasse um memorial dedicado a esse tal Elíseo Giardinni?” – falei-lhe eu, movido por uma inexplicável curiosidade.
A resposta dela ao meu questionamento veio em um tom de voz bastante sereno e nos seguintes termos:
“Bem, Sr. Graziotti, não tenho condições de lhe dizer ao certo que razões teriam levado minha mãe a me fazer tal pedido! Entretanto, como eu já falei uma vez ao senhor, meu pai achava e eu também acho que minha mãe teve uma quedinha por esse Elíseo Giardinni! Não sei se eles chegaram a viver um caso amoroso! Mas, que minha mãe sentia algo muito especial pelo Giardinni, isto lá ela sentia!”
Durante o tempo em que minha mãe e meu pai foram casados, as canções de Elíseo Giardinni e mesmo seu nome eram proibidos em nossa casa. Mesmo assim, minha mãe fazia questão de colecionar tudo que se referia ao artista. Discos, fotografias, recortes de jornais...
A fim de evitar que meu pai viesse destruir os artigos da coleção de minha mãe, ela os organizava e acondicionava cuidadosamente em armários de madeira situados neste salão.
Semanalmente, com a desculpa de que pretendia visitar seu irmão mais novo – meu tio Amadeu Krigher, minha mãe vinha aqui e fazia a manutenção da coleção.
Este salão, onde hoje se localiza o Memorial Elíseo Giardinni, pertencia ao meu tio Márcio, que pretendia montar, em sociedade com Elíseo Giardinni e Chico Ferrari, um estúdio de gravações.
Infelizmente, meu tio e Elíseo morreram antes que este sonho dos dois pudesse ser realizado.
Profundamente desgostoso, Chico Ferrari não quis dar continuidade ao projeto.
Minha mãe e o tio Amadeu herdaram o salão que, em segredo, guardou, durante muito tempo, o vultoso acervo que daria origem ao memorial que hora estamos a visitar.”
“...”
A conversa tecida entre Lucila e eu ao longo do nosso passeio encheu-me de inquietações.
Para mim, pouco significava eu ter descoberto minha identidade pregressa. Afinal, saber meu nome não era a garantia de que eu conseguiria recobrar o meu passado.
Também, de nada adiantaria se eu aprendesse e memorizasse tudo sobre Elíseo Giardinni. Pois, se assim fosse, em lugar de recuperar o meu passado, eu estaria decorando um papel.
Decorar um papel não era o que me interessava. O que eu pretendia era reconquistar minha identidade através da exumação de minha antiga existência.
Profundamente emocionados e silentes, regressamos do passeio no início da noite.
No trajeto da volta, meu espírito repassava, um a um, os fatos relatados por lucila.
Concluí, então, que Heloísa me amava. Porque, se não me amasse, ela não teria demonstrado, por mim e por minhas coisas, tamanha devoção.
“Chamo-me Elíseo Giardinni; sou cantor, vibrafonista e contrabaixista; fui amado por uma mulher deslumbrante. O que mais posso eu querer da vida? Só uma filha como Lucila!” – pensei.
Hebane Lucácius