O Espírito De Prata - Capítulo VII
Capítulo 7
A Ferro E Fogo
Minha estadia no albergue foi relativamente curta. Estendeu-se de dezembro de 1975 a setembro de 1976. Nove meses, portanto. Tempo exato de uma gestação e suficiente para um renascimento.
Tinha onde morar e com quem conversar. Era muito bem tratado.
Embora nos conhecêssemos há pouquíssimo tempo, o Sr. Giovane Graziotti parecia nutrir por mim uma amizade sinceramente desmedida, amparada por uma sinceridade desmedidamente amistosa. Sentimento que eu, da melhor forma possível, tentava lhe retribuir.
De todos os hóspedes da Casa Luz, apenas um parecia não gostar de mim. Era o Franco Ferro. Sujeito cuja aparição no albergue se dera dois meses depois da minha chegada.
Para dizer a verdade, eu também não ia muito com a cara do Franco Ferro. Achava-o suspeito. Impressão compartilhada por todos os meus companheiros de albergue.
Ao contrário do que se poderia pensar, nossa desconfiança em relação ao Franco Ferro não era gratuita. Uma série de motivos a endossava, entre os quais: a fria indiferença com que ele nos encarava, o ar de arrogância com que costumava revestir suas atitudes e, principalmente, o hábito que tinha de utilizar semanalmente, às sextas-feiras, por volta das 17 horas, o telefone da Casa Luz.
“Com quem será que o Ferro tanto conversa?” – indagávamos uns aos outros, cogitando inúmeras respostas possíveis para tal pergunta.
Também depunham contra ele as inúmeras vezes em que o tínhamos flagrado examinando os cômodos do albergue, como se estudasse ou procurasse algo.
Nas raríssimas ocasiões em que se dava o trabalho de conversar conosco, Ferro, com a dureza extrema a que seu nome alude, distribuía-nos insultos e ironias. Isto quando não nos ignorava solenemente.
Franco Ferro não nos aturava. Nós, a nosso turno, não o suportávamos. Estabelecia-se assim nossa antipatia mútua.
Entretanto, houve um dia em que súbita mudança pareceu operar-se no comportamento do homem que, até a noite anterior, nos via como adversários e nos tratava como se inimigos seus fôssemos.
Era domingo. 12 de setembro de 1976.
Naquele dia, Ferro acordou bem disposto, fez questão de cumprimentar a todos nós com um exultante sorriso nos lábios e pediu ao Sr. Giovane Graziotti que lhe permitisse realizar alguns reparos na instalação elétrica do albergue.
No princípio, o italiano hesitou. Mas, logo em seguida, Ferro o convenceu alegando que não lhe seria difícil executar o serviço, uma vez que, antes de decidir hospedar-se na Casa Luz, ele já havia trabalhado como eletricista.
O Sr. Giovane Graziotti sabia que a instalação elétrica do albergue necessitava de reparos. No entanto, por pura falta de recursos financeiros, os vinha adiando.
Ferro, por sua vez, sabia, de alguma forma, que não precisaria empregar avançados recursos de persuasão para demonstrar ao Sr. Giovane Graziotti as vantagens de que disporia se aceitasse o auxílio que lhe era oferecido naquele momento. Tanto que, instantes depois de arrancar o aguardado “sim” do proprietário da Casa Luz, o hóspede fez surgir do aposento que o abrigava uma mala negra repleta de fusíveis, disjuntores, rolos de fios e apetrechos de eletricista.
Confesso que toda aquela situação deixou-me deveras intrigado. Contudo, meu tempo de desconfiança se tinha esgotado.
Entre as inúmeras normas que regiam o bom funcionamento da Casa Luz, havia uma segundo a qual, a cada domingo, um hóspede devia ser escalado para fazer a feira que proveria o albergue durante a semana.
Coincidentemente, naquele domingo, o hóspede escolhido havia sido eu, o que me obrigou a deixar as instalações da Casa Luz antes que Franco Ferro desse início ao seu trabalho.
Estive na feira por pouco mais de uma hora. Mas, quando regressei ao albergue, vi desenhar-se em meus olhos um quadro desoladoramente dantesco.
Lancinantes labaredas lambiam toda a extensão da Casa Luz. Bombeiros tentavam combatê-las sem sucesso. O albergue ardia sufocado por chamas espessas e intransponíveis. Chamas que tudo destruíram e todos sepultaram.
Desconheço a causa a que, na época, se atribuiu a origem do incêndio que destruiu o albergue. Porém, minha intuição jamais se cansou de dizer-me que fora criminoso o caráter da sua natureza e que coubera a Franco Ferro o papel de autor na trama de que resultara o terrível desfecho da história da Casa Luz.
Fui eu o único sobrevivente do incêndio que deu fim à Casa Luz.
Muitos eram os hóspedes que comigo dividiram a paz vigente nas dependências do albergue. Dois deles, no entanto, jamais me fugirão à mente. O Ananias e o Jovino.
Ananias Martins fora o mais antigo morador da Casa Luz. Era alto, forte e mulato. Tinha a fala mansa e saudosa. Seu bem mais precioso era a viola, cujo ponteio costumava animar nossos almoços de domingo.
Para onde ia, Ananias levava a viola, ao som da qual tomei contato com diversos clássicos do cancioneiro caboclo.
Na véspera do incêndio, Ananias se dirigiu até o meu aposento, bateu à porta, entrou, entregou-me a viola e me disse, em tom de despedida:
“Sabe, menino Enzo? Algo me diz que eu não vou passar de amanhã. Gostaria que você cuidasse da minha viola como se ela fosse sua. Você sabe que não tenho filhos, nem herdeiros. É por isso que confio às suas mãos o meu maior tesouro. A Lolita.
Ganhei essa viola do meu pai quando eu tinha quinze anos. É a única lembrança que tenho dele.
Quero que você cuide dela porque sei que o som dela lhe agrada e porque conheço o apreço que você tem pela música que sai dela.”
As palavras do Ananias me deixaram emocionado. Tão emocionado que não tive voz, nem gestos, para me despedir dele, que, compreendendo-me as singulares características do estado, partiu em silêncio.
Na manhã seguinte, devolvi a viola ao Ananias, afirmando parecer impossível que fosse aquela sua derradeira manhã. Afinal, ele continuava tão forte e robusto quanto a madeira com que se fabricara o seu amado instrumento.
Ananias aceitou a devolução da viola e agradeceu-me pelo elogio. Entretanto, no tocante ao argumento através do qual tentei desmontar-lhe a predição, o velho mulato quedou-se indiferente.
Abraçamo-nos pela última vez três horas antes do incêndio.
À visita do Ananias serviu-me de prelúdio a do Jovino. Companheiro pelo qual, ainda hoje, guardo um carinho imenso.
Contava-se que a história da sua chegada ao albergue se fizera cercada por uma aura de mistério. Todavia, a verdade dos fatos era uma só. Ei-la:
Recém-nascido, Jovino fora abandonado à porta da Casa Luz.
O Sr. Giovane Graziotti, proprietário e mantenedor do albergue, o encontrara, o resgatara, o acolhera, cuidara dele e, com a devida autorização da Justiça, o adotara.
Seu nome viera do fato de haver sido ele o mais jovem dos hóspedes que chegaram à Casa Luz.
Jovino tinha duas grandes paixões. O futebol e o desenho.
Para ele, os mais valiosos tesouros materiais que um menino podia ter eram três, a saber: uma bola de capotão, uma camiseta oficial do Palmeiras e uma grande caixa de lápis de cor.
Jovino possuía os três. Razão que, somada ao privilégio de que desfrutava ao contar com o incondicional amor de um pai bastante zeloso, alimentava o sorriso perene que, em seu rosto, se instalava.
Na noite que precedeu o dia do incêndio, Jovino se pôs silenciosamente à porta do meu aposento. Decerto, não queria incomodar-me, uma vez que eu já me havia recolhido.
De vez em quando, seus olhos buscavam, pelo buraco da fechadura, algum sinal de que eu estivesse acordado. Porém, como eu me conservasse deitado e imóvel na cama, Jovino resolveu ir-se embora.
Um pigarro, contudo, o traiu, fazendo com que eu lhe notasse a presença e lhe abrisse a porta.
Sorrindo, como sempre, Jovino entrou e me entregou uma folha de papel.
Nela, havia um desenho feito por ele. Era um auto-retrato seu, no qual se lia a seguinte legenda.
“Do aspirante a artista Jovino Graziotti para o Tio Enzo, a fim de que ele jamais se esqueça de mim no instante em que chegar a hora de nos separarmos.”
Meus olhos inundaram-se de lágrimas. O pranto e o silêncio por mim falaram.
Abracei Jovino que nada me disse. Apenas beijou-me a face e partiu.
Na manhã do incêndio, Jovino e eu não nos vimos. Acredito que ele dormia no momento em que o fogo começou.
Jovino deixou a vida envolto pela mesma serenidade que sempre trouxera esculpida em seu terno rosto de infante.
Pereceram no incêndio o Ananias, a viola, o desenho e Jovino. Acho que um pouco de mim também pereceu com o incêndio.
O fogo levou consigo o albergue. Minha casa. Minha luz.
Entre a data do incêndio que consumiu o albergue e o dia em que fui encontrado por Lucila, transcorreu-se um longo espaço de vinte anos. Tempo em que não me restou outra saída. A não ser fazer-me andarilho.
Desprovido de amigos e carente de laços que me prendessem a uma localidade determinada, adormeci cada dia num lugar diferente.
Vivi de esmolas. Alimentei-me de restos.
Fui, como hoje ainda sou. Nada mais do que um sobrevivente.
Sobrevivi a vários desastres. A um acidente; à desmemória; a um incêndio; à mendicância; à incerteza; a quem fui; a o que sou.
Ao acolher-me, estendendo-me os braços de uma redenção que, ainda hoje, não sei se mereço, Lucila foi o sopro de vida que me acariciou a existência quando minhas esperanças jaziam aniquiladas.
Chego a pensar nela como creio que um pai deva pensar na filha que, há muito, não vê. Sinto nela um elo que, situado no presente, é a ponte que me vincula ao passado que perdi e o marco que me aponta o futuro que caberá a mim construir após a descoberta desse passado.
Nas quotidianas conversas que mantenho com as forças transcendentes que tecem os porvires humanos, peço que me seja permitido deixar o mundo antes de Lucila. Certo estou de que não conseguiria suportar se a perdesse para a morte como perdi o Sr. Giovane Graziotti, o Ananias e o Jovino.
Hebane Lucácius