O Espírito De Prata - Capítulo V
Capítulo 5
Rosa Negra
Passados os efeitos do último turbilhão de lembranças que me havia tragado e o redemoinho de indagações que o sucedera, fui tendo o que se pode chamar de “boas semanas”.
O primeiro salário que recebi como gerente de estoque da Companhia da Canção fez-me pensar na possibilidade de deixar a casa de Lucila.
Cheguei a cogitar a hipótese de dividir com o Tony Charlie, um vendedor com quem eu costumava viver às turras, um quarto maior na pensão onde ele já morava.
Tomaria, apenas, uma refeição por dia. O jantar no Antares. Afinal, para o Brito, não faria diferença cobrar de mim um preço menor do que o habitual.
Confesso ter ensaiado, inúmeras vezes, na frente do espelho, o modo como me despediria de minha benfeitora.
Confesso também que me acenou a ideia de deixá-la sem me despedir.
No entanto, não temo afirmar que me faltou coragem para realizar o que minha mente vinha planejando.
Seria um tremendo ato de ingratidão da minha parte deixar a senhorita Lucila depois de todas as coisas que ela já tinha feito por mim e, se existe um defeito que eu jamais carreguei comigo, este é o de ser ingrato com aqueles que me estendem ou me estenderam a mão.
Lucila era uma boa pessoa. Sua caridade para comigo não merecia tão cruel recompensa.
Minha vida seguia sem grandes acontecimentos.
De segunda a sábado, o trabalho me absorvia as manhãs e as tardes.
Aos domingos, minha principal distração consistia em executar peças curtas no vibrafone.
Imaginava-me saudado por uma grande platéia que me aplaudia e gritava meu nome. Um nome que eu não conseguia compreender.
“Que nome seria esse? Porque é que eu não conseguia compreendê-lo?”
A vida, em algum momento, haveria de responder meus questionamentos. Entretanto, esse tal momento parecia distanciar-se de mim à medida que os dias se iam arrastando à minha frente e me deixando para trás no tempo.
Houve uma situação, porém, em que a revelação do meu passado transmitiu-me a impressão de se encontrar mais próxima de mim do que eu poderia pensar.
Ei-la:
Foi numa noite de sexta-feira.
Apoderou-se do meu ser uma estranha e súbita sensação de sono à qual não pude resistir.
Até para jantar me faltaram forças. Fato que me obrigou a recolher-me à cama bem mais cedo do que de costume.
Adormeci logo. Nem mesmo tive condições de concluir minha habitual prece noturna.
De repente, me vi em um local bastante afastado da casa em cujo quarto, meu corpo, inerte, jazia.
Avistei-me cercado por um belo jardim repleto de rosas. Mas, entre as muitas rosas que ornavam o jardim, uma se destacava.
Tratava-se de uma rosa negra, quase azul, por cujas pétalas, meus olhos se mostravam profundamente atraídos.
Ao longe, uma doce melodia preenchia toda a extensão ocupada pelo recinto.
Sua delicada execução provinha, ou, pelo menos, parecia provir, do som característico de um contrabaixo cubano tocado por um senhor de quem eu só conseguia ver os contornos diáfanos do vulto.
Quis aproximar-me do senhor que tocava, ou, pelo menos, parecia tocar o contrabaixo para ouvir de perto a canção. Por isso, caminhei em busca do ponto de onde o som vinha. Contudo, algo me chamou a atenção: a constatação de que, ao passo que eu caminhava, a rosa negra me acompanhava.
Achei tudo muito esquisito. No entanto, minha curiosidade em saber de onde vinha exatamente a canção que me impressionava os sentidos, não permitiu que eu me detivesse ou me perdesse em considerações vazias e sem importância.
Minha perambulação pelo jardim em companhia da rosa negra obteve êxito. Seguindo cada rastro que a música imprimia no ar, cheguei ao instrumentista que, no mesmo instante em que sentiu minha presença ao seu lado, parou de tocar.
Cumprimentamo-nos cortesmente e, apressadamente, lhe perguntei:
“Como se chama o senhor?”
“Chamo-me Pepe Calderón.” – respondeu-me ele com um forte sotaque, cujo acento, de alguma forma, eu sabia ser de Cuba.
“O que o senhor faz aqui, Sr. Calderón?” – prossegui eu em minhas indagações.
“Toco algumas canções que me recordam o passado.” – ...
Desconheço o porquê de tal reação. Mas, ao ouvir a palavra “passado”, meus olhos encheram-se de lágrimas.
“Porque chora, senhor?” – questionou-me o encanecido contrabaixista.
“Choro por não ter passado.” – disse-lhe eu com um tom de tristeza estampado na voz.
“Mas, todos temos um passado!” – afirmou-me o músico.
Na tentativa de mudar de assunto, quis saber do cubano onde tinha ele arranjado o contrabaixo, dirigindo-lhe a seguinte pergunta:
“Este contrabaixo pertence ao senhor?”
“Não exatamente.” – foi o que ele me respondeu.
“Como assim? “Não exatamente”?” – insisti.
“Este contrabaixo foi fabricado por mim. Mas pertence a outra pessoa. Eu só o tomei emprestado para executar algumas canções.” – relatou-me o cubano.
“E de quem foi que o senhor pegou emprestado o instrumento?” – ...
“Do Senhor.” – ...
Meu pranto não se conteve quando Pepe Calderón me entregou o contrabaixo e desapareceu no horizonte.
Desajeitado, cedi ao impulso de dedilhar o instrumento. Entretanto, no momento em que dei por mim, já o estava tocando com a desenvoltura de um profissional tarimbado.
Pouco durou, para mim, o êxtase de tocar aquele interessante exemplar de contrabaixo. Pois, ao mesmo tempo em que as notas começavam a desenhar-se no espaço, o mesmo espaço absorvia, aos poucos, todo o cenário que se estendia à minha volta.
O primeiro ente a sumir foi a rosa negra. Em seguida, o jardim evaporou. Depois, foi a vez de o contrabaixo evanescer.
Permaneci, durante um tempo que não sei precisar, sozinho em meio ao ermo. Até que, finalmente, também acabei dissolvido pelo espaço.
Acordei trêmulo e sobressaltado. Um suor abundante e denso me banhava da cabeça aos pés.
A única reação que me ocorreu foi fazer uso do “Álbum De Sensações” e registrar, em palavras e desenhos, o sonho que eu acabara de ter.
No dia seguinte, com calma, contaria o sonho a Lucila e lhe mostraria meus registros. Quem sabe ela poderia decifrá-los.
O dia seguinte chegou. E, com ele, uma nova jornada intensa e cansativa de trabalho.
Mal pude esperar o término do expediente para contar meu sonho e mostrar meus registros a Lucila, que, ao ouvir-me e lê-los, quedou-se deveras impressionada.
Em sua casa, Lucila me pediu que a esperasse enquanto ela se deslocava rumo a um cômodo desconhecido do imóvel. Cômodo de onde regressou trazendo nas mãos um grande estojo de madeira.
O estojo, para meu espanto, ostentava, em uma de suas faces, uma rosa negra, quase azul, entalhada.
A rosa era idêntica à que figurara no meu sonho.
Com uma chave, Lucila destrancou o cadeado que vedava o estojo e, depois de abrí-lo, retirou, cuidadosamente, um objeto que se apresentava embrulhado por uma capa rústica de couro.
Era, surpreendentemente, um contrabaixo cubano, cuja fabricação vinha atribuída a certo Pepe Calderón.
Comovido, tomei nas mãos o instrumento e, com a devida permissão de Lucila, tal como no sonho, comecei a dedilhá-lo instintivamente.
Assustei-me ao notar que, dos meus dedilhados, emergia uma canção. A exata canção que ecoava no sonho.
Percebi que a melodia podia ser acompanhada por um assovio.
Assoviei. E a canção que ouvi foi a mesma que, tempos atrás, eu havia assoviado na Avenida das Araucárias. Lugar em que fora flagrado e abordado pelo homem que, no meu último grande lampejo de memória, me havia aparecido em feição mais jovem, sendo-me apresentado por Márcio Krigher com o nome de Téo Dias.
A canção, que o instinto me soprava, teve duração aproximada de três minutos e meio, ao fim dos quais, os olhos de Lucila se mostraram profundamente marejados. Como eu lhe questionasse o motivo de tão copioso planger, ela, sem pensar duas vezes e sem proferir uma só palavra, conduziu-me ao aposento em que guardava sua vultosa coleção de discos, tomou um deles entre as mãos, desencapou-o e o colocou na vitrola.
Sentamo-nos, um ao lado do outro, no sofá, enquanto a música se introduzia solenemente no ambiente.
Reconhecemos, de imediato, na faixa do disco, a melodia que, há pouco, eu tocara no contrabaixo e acompanhara no assovio.
Minha mente e meus sentidos, ante os primeiros acordes amplificados pelas caixas de som da vitrola, mergulharam-se em profundo estado de névoa.
Apenas a imagem de Heloísa, iluminada, me sorria.
“Era para ser a flauta!” – sussurraram meus lábios incompreensivelmente.
Lucila, felizmente, não pôde ouvir-me o sussurro. Contudo, concluída a música, disse-me a moça emocionada:
“Esta é a canção favorita de minha mãe. Chama-se “Blue Angel”. É uma composição dela, de Elíseo Giardinni e do meu tio Márcio. Está presente na versão estadunidense do mais famoso álbum de Elíseo Giardinni. A versão brasileira do álbum se chama “O Espírito de Prata”. A estadunidense “Silver Soul”.
Durante muito tempo, minha mãe foi obrigada a ouví-la às escondidas, já que, quando ela era casada com o meu pai, vigorava, nesta casa, uma norma que proibia a execução de qualquer gravação de que participassem, ou Elíseo Giardinni, ou o meu tio Márcio.
O contrabaixo utilizado nesta gravação é o mesmo que, há pouco, o senhor tocou. Foi um presente que Elíseo deu a meu pai no último encontro que eles tiveram.
Meu pai tentou, várias vezes, dar um fim nele. Mas, eu, com a desculpa de que estava interessada em estudar baixo acústico, salvei o instrumento.”
A mim soava inconcebível que um homem pudesse proibir sua esposa de ouvir os discos de determinado cantor. Por este motivo, algo me fez querer conhecer a causa de tal proibição, o que veio a originar o seguinte diálogo:
“E a senhorita sabe ou imagina por que o seu pai proibia a sua mãe de ouvir as gravações desse tal Elíseo Giardinni?”
“Não sei bem o porquê. Mas, imagino que tenha sido por ciúme.”
“Ciúme? E o que faz a senhorita pensar que tenha sido esta a causa da proibição?”
“Acho que minha mãe teve uma quedinha pelo Elíseo Giardinni.”
“Quedinha?”
Minha pergunta derradeira ficou sem resposta.
O adiantar-se da hora impediu-nos de prosseguir em nossa conversa. Sendo assim, dirigimo-nos, cada qual, ao seu ambiente de descanso.
Hebane Lucácius