O Espírito De Prata - Capítulo IV

Capítulo 4

Nome De Família

Desde a descoberta do vibrafone no porão, pouco mais de um mês se passou.

O caso de Lalo e Chico fora, até então, o último lampejo de lembrança a ocorrer-me na memória.

Oprimido por um ócio que começava a tornar insuportável minha estadia na casa de Lucila, pedi-lhe que me arranjasse uma ocupação, o que ela fez imediatamente, encarregando-me de gerenciar o estoque da Companhia da Canção.

Desenvolvi, nas últimas semanas, o hábito diário de, após o jantar, com o objetivo único de matar o tempo, reler inúmeras vezes, até que o sono chegasse, a carta por meio da qual Lucila me apresentara o “Álbum de Sensações”, cujas páginas ainda se mostravam vazias.

Começava a assaltar-me a certeza de que as linhas traçadas por minha benfeitora jamais haviam passado de uma simples sucessão de trivialidades. Certeza que o tempo tratou de demolir no dia exato em que reparei bem na assinatura que as encerrava.

Os dois sobrenomes de Lucila – “Krigher” e “Dias” – soaram-me conhecidos.

Sem dúvida, em meio aos capítulos ocultos do meu passado, haviam figurado personagens reconhecíveis pelos referidos nomes de família.

Meu pensamento se pôs a examinar atentamente e a esmiuçar cada caractere da assinatura de Lucila à caça de recordações que lhe pudessem fazer algum sentido. Porém, quanto mais se esforçava, mais distante se via do que procurava.

Foi quando, numa certa noite, senti-me tragado por uma torrente de lembranças.

Avistei-me em meados de uma incipiente madrugada, sentado, ao lado de alguns amigos, em torno da mesa de um bar bastante parecido com o do Brito. Talvez até fosse o próprio Antares.

Todos os meus amigos presentes na cena, cerca de cinco, eram músicos. Talvez também eu o fosse.

Entre eles, apenas um me pareceu conhecido. Tratava-se do Márcio Krigher, que, após se ter ausentado da mesa durante alguns minutos, regressava ao grupo acompanhado por um homem e uma mulher. Casal que ele gentilmente nos apresentou.

A mulher era sua irmã Heloísa. O homem era o namorado dela. Chamava-se Telêmaco de Souza Dias. Mas, nas casas noturnas em que atuava como contrabaixista profissional, fazia-se conhecer pela alcunha de Téo Dias.

Téo integrava, juntamente com o guitarrista Guilherme Castro (William Karlson) e o baterista Santhiago Esteves (James Stuart), um conjunto de rock, o The Kings.

Não pude deixar de reconhecer naquele Téo Dias uma espécie de imagem moça do homem que, pouco mais de um mês atrás, me surpreendera sentado na calçada a assoviar uma canção inocente e, sem qualquer razão aparente, me volvera olhares de desprezo.

Dizia-se de Heloísa que ela tocava muito bem flauta. No entanto, raros eram os momentos em que dava demonstrações públicas de seu talento com o referido instrumento. Preferia que a reconhecessem como autora das letras dos temas compostos pelo irmão.

Se me fosse permitido defini-la em poucas palavras, eu diria que ela era, em forma de mulher, o produto irrefutável do feliz casamento do êxtase com a perfeição.

Falo isto porque, naquele dia, nem mesmo a presença de Téo impediu que nossos olhares se cruzassem, se fitassem, se penetrassem e, em silêncio, se declarassem abrasados pelo gérmen de um amor nascente.

Na manhã seguinte, tive dificuldades para me levantar. Acordei exausto e febril. O esforço mental, sem sombra de dúvida, me havia conduzido à fraqueza física.

Felizmente, era domingo. Não teríamos de abrir a loja.

Lucila cuidou de mim do mesmo modo como se imagina que uma filha zelosa deva tratar do pai enfermo.

À noite, quando eu já estava melhor, conversei com Lucila acerca das lembranças que me haviam ocorrido no dia anterior.

A conversa foi a seguinte:

“Srta. Lucila!”

“Diga, Sr. Graziotti!”

“A senhorita tem algum parentesco com o Márcio Krigher?”

“Sim. Sou sobrinha dele. Por quê? O senhor o conhece, Sr. Graziotti?”

“Acho que o conheci no passado.”

“Como assim? Acha que o conheceu no passado? O senhor andou tendo algum flash de memória em que ele apareceu?”

“Sim. Ontem, durante um surto de recordações remotas, minha mente se deparou com as feições e os nomes de dois músicos, um chamado “Márcio Krigher” e outro chamado “Téo Dias”. Avistei também, entre alguns vultos, de que não me fora o nome revelado, e outros nomes, de que revelado não me fora o vulto, a feição de uma jovem bastante parecida com a senhorita. Chamavam-na “Heloísa”.”

“É. Chego a não ter dúvidas de que o senhor, de fato, conheceu meu tio Márcio, meu pai e, principalmente, minha mãe nalgum recanto oculto do seu passado. Afinal, se as feições e os nomes deles apareceram em sua mente, é porque eles, de alguma forma, fizeram parte da vida que o senhor vivia antes de o encontrarem sem memória e de lhe designarem a alcunha de Enzo Graziotti. Fico muito feliz por isso. Não só por perceber que parte da sua,... digamos..., existência pregressa, começa a ser revelada. Mas, por saber também que o senhor é, de certa forma, um velho conhecido de minha família, o que me faz sentir honrada pelo destino e comprometida com a recuperação das lembranças que tanto fazem falta ao senhor.”

“Também me sinto feliz. Entretanto...”

“Entretanto... O que, Sr. Graziotti?”

“Entretanto, será muito importante para mim se a senhorita puder me contar por onde andam o Márcio, o Téo e a Heloísa. Pois, se eu souber onde é que eles estão, poderei me dirigir a eles e levantar informações sobre o homem que fui no período anterior a 18 de dezembro de 1975.”

“Pois bem. Se o senhor deseja saber...

Meu pai continua músico. Vive a poucas quadras daqui, na Rua das Araucárias. É um sujeito de tipo recluso. Só sai de casa a trabalho. Penso que procurá-lo será uma grande perda de tempo. Estou certa de que ele não o ajudará. Ainda mais se o senhor for falar-lhe do Tio Márcio. Meu pai nutre uma aversão inexplicável por todas as coisas que dizem respeito ao meu tio Márcio.

Já minha mãe, que creio ser a pessoa cujo destino atual mais lhe interessa, vive na Inglaterra, onde atua como correspondente cultural em um jornal de grande circulação.”

“Quer dizer então que seus pais são divorciados?”

“Meus pais estiveram casados durante vinte anos. Mas, se separaram há oito, logo que minha mãe recebeu o convite para trabalhar na Inglaterra.”

“E o seu tio Márcio?”

“O que tem o meu tio Márcio?”

Por onde anda o seu tio Márcio?”

“Meu tio Márcio morreu em um desastre de automóvel na altura de Serrânia.”

“Estava alguém com ele, no momento do acidente?”

“Sim. O cantor, vibrafonista e contrabaixista Elíseo Giardinni.”

“E esse tal Elíseo Giardinni? Ele sobreviveu?”

“Na certa, ele morreu. Porém, seu corpo jamais foi encontrado.”

“E não há chances de ele ter sobrevivido?”

“Acho que não.

Meu tio Márcio era músico. Tocava saxofone no conjunto de apoio de Elíseo Giardinni. Os dois regressavam de um show, quando o carro em que viajavam perdeu o freio numa curva e caiu em uma ribanceira. O automóvel e o corpo do meu tio Márcio, que o dirigia, ficaram irreconhecíveis. Portanto, não há como Elíseo Giardinni, que estava sentado logo ao lado, no banco do carona, ter escapado a essa tragédia.”

Neste ponto, a conversa terminou. Despedimo-nos com um tão habitual quanto cordial “Boa noite!” e seguimos, cada qual para o seu quarto.

Passei a noite toda sem dormir. A história de Márcio Krigher enchia-me a cabeça de questões.

“Se o corpo de Márcio havia sido encontrado, por que não se teria achado o de Elíseo, uma vez que os dois estavam juntos no carro?”

“Quem pode garantir que o tal Elíseo não sobreviveu?”

“Será que Elíseo Giardinni não pode estar desaparecido a padecer um destino semelhante ao meu?”

“Será que o Giardinni mencionado pelo Brito e o Giardinni que acompanhava Márcio Krigher no momento do acidente não são a mesma pessoa?”

“Será que não sou eu o próprio Elíseo Giardinni?”

O simples aceno de tal possibilidade deixou-me deveras baratinado, embrulhando-me e confundindo-me a cabeça ainda mais.

Afinal, se é possível que eu seja, de fato, o tal Elíseo Giardinni, também é bem possível que a casa onde hora estou tenha alguma ligação com ele. Pois houve momentos em que cada detalhe do mencionado recinto me pareceu familiar, inclusive o vibrafone guardado no porão e o monograma estampado na caixa que o embalava.

Felizmente todos esses questionamentos desapareceram-me da mente com o advento da manhã e eu pude, enfim, ir trabalhar em paz.

Hebane Lucácius