O Espírito De Prata - Capítulo II
Capítulo 2
A Exemplo De Fellini
Ao contrário do que Lucila me havia falado, o quarto que se destinava a abrigar-me naquela noite era tremendamente confortável. Uma verdadeira habitação.
Fazia muito tempo que meu corpo não desfrutava de certos prazeres, que, para algumas pessoas, não passam de frívolas banalidades, entre os quais: o aconchego de um quarto, a maciez de um leito, o conforto de um travesseiro e o calor de uma coberta.
Minha alma, naquele momento, sentia-se leve. Parecia que todas as desventuras por mim vividas ao longo do dia se tinham transferido para a avenida do passado.
Perfeita e simetricamente contíguos, minha provisória habitação e o quarto permanente de Lucila eram tão próximos que, se quiséssemos, poderíamos escutar, um do outro, a mais sussurrada emanação mental.
Dormi logo. Não concluí, nem mesmo, minha prece habitual.
No dia seguinte, após uma noite de sono sem precedentes, reparei, ao despertar-me, que já passava das oito horas da manhã. Hora demasiado tardia para alguém que sempre teve por costume acordar com os galos.
Tratei, então, de recompor a cama e preparar-me para deixar, não só o aposento, mas, a casa. Afinal, embora Lucila me houvesse hospedado com todo o carinho possível, seu domicílio não me pertencia. Além disso, não existia, entre nós, qualquer parentesco.
Antes que eu partisse, o desejo de fixar na mente os traços do recinto de que me fora permitido colher exíguas horas de felicidade fez-me lançar, sobre toda a extensão do quarto, um último olhar.
Foi com surpresa que, em meio à contemplação derradeira do cômodo, avistei, atrás da porta, pendurado num cabide, um traje casual completo, o qual, apressadamente, vesti, e, sobre o criado-mudo que se punha à direita da cama, uma vistosa bandeja de café-da-manhã ladeada, à esquerda, por um embrulho de forma retangular.
Duas sensações disputavam-me a primazia do ser. Ambas impacientes e ansiosas para serem saciadas. Eram a fome e a curiosidade. Todavia, a lembrança de que já vinham sendo numerosos os anos que me separavam da última vez em que gozara o luxo de tomar a refeição matinal fez com que a primeira infligisse humilhante derrota à segunda.
Saboreei, com avidez, o café-da-manhã preparado por Lucila, ao mesmo tempo em que me recordava de que minhas refeições habituais diárias, há muito, se resumiam às sobras dos almoços e jantares oferecidos pelo Bar & Restaurante Antares, outrora conhecido pela alcunha de “Bar do Brito”.
Certa feita, perguntei ao dono do lugar, um gaúcho que atende pelo nome de Antero Brito, a razão que o levava a ofertar-me as sobras do menu servido em seu estabelecimento, posto que, em geral, notória fosse sua aversão por mendigos, pedintes e andarilhos.
Sem pensar, ele me respondeu que o fazia porque minha figura suscitava-lhe boas lembranças.
Intrigado com sua resposta, pedi-lhe que se explicasse. Ele, então, contou-me a seguinte história:
“Em princípios dos anos 60, além de funcionar como bar e restaurante, o Antares também era a casa noturna mais famosa de toda esta vasta região, o que, em grande parte, se devia à excelente qualidade da música com que entretinha seus freqüentadores, principalmente, aos sábados.
Tocava aqui, nesta época, um conjunto chamado Sexteto Austral, cujo vocalista eu prezava bastante e se parecia muito com você.
Não me lembro do nome dele. Mas, sei que acabou se tornando um cantor de renome. Chegou, até mesmo, a gravar nos Estados Unidos.
Sua fama, porém, não fez dele um homem orgulhoso ou arrogante. Assim, mesmo depois da glória, era comum vê-lo por aqui a dar uma canja, pelo menos, uma vez por mês, com seus antigos companheiros de conjunto.
Ignoro os caminhos pelos quais ele hoje anda. Acho até que morreu. Pois, faz um tempo enorme que ele não vem aqui. Creio que,... Uns..., 20 anos.”
Impressionado pela história que o Brito acabava de me contar, resolvi-me a dedicar alguns minutos do meu ócio à prática de um interessante exercício de imaginação.
Imaginei, primeiramente, a possibilidade de ser eu o cantor desaparecido que voltava. Depois, esforcei-me por atribuir a tal cantor uma perda de memória semelhante à minha. Em seguida, busquei estabelecer uma ligação entre a perda da memória e o desaparecimento, tornando o primeiro fato causa do segundo. Por fim, como coroamento do exercício, pensei nas palavras que diria ao Brito, se me encontrasse na referida situação.
Saíram-me uns versos em forma de samba, os quais se introduziam por uma quadra em que se afirmava:
“Bem que o brito me avisou,
Mas, eu não acreditava,
Bem que o Brito me avisou,
Que a aparência me entregava.”
Desconheço as razões que me conduziram a formular o referido exercício. Entretanto, lembro-me de que a audição do samba recém-composto provocou, no proprietário do Antares, um irreprimível acesso de choro. Como lhe indagasse o motivo de tão forte emoção, Antero Brito declarou-me que até a minha voz se assemelhava à do antigo vocalista do Sexteto Austral.
Tempos mais tarde, em novas conversas entre o Brito e eu, tornamos, inúmeras vezes, a discorrer acerca do conjunto e de seu vocalista. O tal, que, segundo meu interlocutor, se parecia comigo até na voz.
Descobri, entre outras coisas, que o nome do cantor principiava pela letra “E”, que seu sobrenome era Giardinni e que o motivo de ter ele deixado o Antares e o Sexteto fora o convite que recebera e aceitara para participar de uma série de espetáculos com o Bonanza Jazz Trio e o saxofonista Maurício Fróis no Clube Lancaster.
Findos o café-da-manhã e as recordações, procedi à abertura do embrulho que ladeava a bandeja, no interior do qual, para meu mais absoluto espanto, jazia um caderno, em cuja capa, lia-se, em belas letras douradas, a seguinte inscrição:
“ÁLBUM DE SENSAÇÕES”
Acompanhava o caderno uma carta, que dizia:
Caríssimo Sr. Graziotti,
Confesso que, apesar de ter passado a noite inteira em claro, pensando em qual poderia ser o meio mais eficaz de auxiliá-lo na recuperação de um passado que tanto lhe faz falta, não houve ideia que me soasse mais plausível do que este humilde caderno. Todavia, se bem o adivinho, surpreso, o senhor, neste momento, deve estar questionando:
“Como é que um simples caderno pode contribuir para a exumação de algo que a própria memória já se incumbiu de sepultar?”
Respondo-lhe:
Há algumas semanas, tive a oportunidade de assistir, pela televisão, a um documentário que discorria sobre as curiosidades inerentes à vida do cineasta italiano Federico Fellini.
Agradaram-me muito as informações expostas através do filme. No entanto, uma delas acabou por chamar-me a atenção mais do que as outras.
Dizia que Fellini, seguindo uma sugestão apresentada por seu terapeuta, adquirira o hábito de registrar, em texto ou desenho, as situações com que sonhava, tendo chegado, inclusive, a coligi-las em um livro, o qual viria a tornar-se conhecido como “O Livro Dos Sonhos”.
Durante os primeiros dias que se sucederam à exibição do documentário, a referida informação mostrou-se bastante nítida em minha mente. Com o transcorrer do tempo, porém, ela se foi diluindo entre as tribulações quotidianas, até sumir-se, quase que definitivamente.
Ontem à noite, ao tomar ciência do seu caso, vivi a impressão de que um fato importante retornava à superfície do oceano de minhas lembranças e me vi às voltas com a possibilidade de aplicar ao senhor algum expediente cujo princípio se assemelhasse ao adotado pelo terapeuta do famoso cineasta.
Segundo sei, costuma ser comum que pessoas acometidas por perdas de memória, como é o caso do senhor, experimentem, de vez em quando, a sensação de serem apresentadas a lampejos associáveis ao passado por elas ignorado. Sendo assim, gostaria que o senhor compreendesse que minha intenção, ao presenteá-lo com este caderno, é, única e tão somente, ajudá-lo, pedindo-lhe que escreva ou desenhe, sobre suas páginas, cada flash de memória que lhe ocorrer e submeta suas anotações à minha apreciação logo que eu chegar da loja.
Pretendo, com base nos registros contidos no interior deste “Álbum de Sensações”, proceder a um trabalho de reconstituição do passado que o senhor julga perdido.
Creio não ser preciso avisá-lo de que, pelo bem do mencionado trabalho, é mister que o senhor permaneça hospedado em minha casa.
Fique certo de que, enquanto estiver sob meu teto, nada lhe faltará em termos de conforto e de cuidados!
Em matéria de alimentação, por exemplo, prometo proporcionar-lhe refeições mais agradáveis do que aquelas que as circunstâncias o obrigavam a tomar nos tempos em que o senhor costumava adormecer sob marquises.
O senhor disporá de livre acesso a todos os cômodos e gêneros existentes nas dependências desta casa.
Seu quarto continuará sendo o recinto que, hora, o abriga.
Na gaveta do criado-mudo há, além de um número considerável de cadernos sobressalentes idênticos a este que o senhor tem nas mãos, farto material de escrita e de desenho.
No que concerne a vestimenta, o senhor terá, no armário, à sua inteira disposição, algumas peças de roupa que pertenceram a meu pai. Servirão perfeitamente, já que as medidas dele são praticamente as mesmas do senhor.
Reconheço que deve ser extremamente difícil, para um andarilho, restringir, ao limitado espaço de uma casa, a área a ser percorrida pelo alcance de seus passos. Entretanto, recomendo ao senhor que só se ausente de minha residência nos momentos em que julgar estritamente necessário, pois, saber, ao certo, o local onde o senhor se encontra, é condição imprescindível para que eu possa provê-lo do auxílio de que necessita.
Espero que o senhor aceite os préstimos que, com a mais absoluta sinceridade, lhe ofereço.
Atenciosamente:
Lucila Maria Krigher Dias
Hebane Lucácius