O mercador de dignidade
Segundo as bocas malditas, era Jesuíno - vulgo "Lá vêm o Agouro" - se apresentar nos arrebaldes mordendo um par de dentaduras ressecadas pelo Sol escaldante que fazia evaporar a água do copo que as abrigava, engomado com o paletó cheirando naftalina; e sem meias, calçando um par de sapatos de couro de cobra nos pés, nas mãos uma pastinha estampando caveiras degoladas por foices cegas na capa e montado em um pangaré de olhos tristes afundados no globo ocular, um sonho derradeiro aportaria em algum Sertão distante.
Jesuíno não era odiado, mas raro era alguém te-lo como alguém confiável e amigo de fundo de cozinha. Até mesmo com os familiares, a prosa rápida e rasteira, não passava do portão para o terreiro da casa.
Quando muito, meia dúzia de palavras e o "até logo Jesuíno, vá com Deus", roçava o fim do monólogo nos seus ouvidos. E uma lufada de vento uivante, seguida pela reverência dos arbustos, despedia de quem falava com Ele.
Contudo, o paletó naftalinado, os desengonçados sapatos de couro de cobra, o silêncio, a quase solidão, o dia engolido pela noite, o pangaré trôpego cambaleante, o medo mortal das pessoas de tê-lo por perto, nada, nada tirava a paz, arrancava a serenidade da mente, do sério e respeitoso mercador de dignidade; afinal, tinha consigo o lema que ninguém, nem o pior inimigo merece ter suas nuas intimidades, glórias e vísceras rasgadas; as quais após retiradas as melhores lições e lascas de carnes ainda à meia temperatura, lançadas aos ululantes vermes pelos bicos de abutres e corvos.
Quando João Cabral levantou da Cova
Nordeste: meados do século XX
Sob a quentura do Sol, a Enxada rombuda arrancava faíscas de fogo da terra seca. O objeto que um dia foi cortante, fazia de tudo para juntar as migalhas esfareladas de terra, cuja finalidade, era dar um pouco de vida para a roça; que ainda teimava em dizer que o plantado, era milho.
Dona Genoveva, a legítima proprietária da Enxada - talvez a única freguesa, Ela tinha a mania de pedir Nota Fiscal do comprado, para o vendeiro; e Ele que se virasse - imitando as galinhas ao catar o milho e outros grãos, terminará de catar e juntar as palavras nos capítulos, os quais em totalidade, dera-lhe a grata honraria de dizer que lera um livro de
poucas páginas. Se entendeu, são outras catadas e juntadas de palavras; mas que conseguiu ler o livro todo, conseguiu.
Na noite seguinte à proeza, lá pelas tantas da noite, recebeu em sua alcova, a presença de João Cabral, senhor escritor do livro lido por Ela. Tal fato poderia ser memorável, se o autor do livro não tivesse alertado-a, que a sua "Enxada deveria fazer bem, fazer da melhor forma possível."
Inocente e meio sonolenta, Ela indagou-o, querendo saber o que Ele queria dizer com aquilo. E de pronto, João a respondeu: "exija que a Enxada chegue bem terra no pé da plantação, caso contrário, a Pá chegará terra nos pés da dona dEla".
- cruzi-credo; credo in cruzi, sô Jão, vai agorá otra! No
- não está mais aqui, quem falou. Eu não vim de longe para te enganar...; leia o livro, novamente.
"Respirar a vida e lavrar a terra, dependem de força, coragem e fé."
Aos trancos e garranchos, Genoveva rabiscou - para o bem da verdade, copiou de algum cátedra da literatura - no pouco de terra que desprendeu do maciço tórrido compactado. Lógico que o milagre frasal não foi de um dia para o outro; contudo, a dona da Enxada sentia-se realizada, chegando ao ápice de dizer para Deus e o mundo que era uma agricultora de coração plácido. "Poço dizê que sô uma escrivinhadera de palavras que vali oro".
E sempre que esse capítulo pedia passagem em sua memória, ligava a velha vitrola e botava o vinil de Luiz Gonzaga para fritar na agulha. Ouvia, ouvia, ouvia e ouvia, o musical "Asa Branca"; hino de mulheres e homens nordestinos, os quais naquele tempo e antes de tudo, eram fortes.
E o gregarismo cultural / regional completava...
- óia, Benzim, aqui tem manga. Por que lá num dá.
- acho que é porque lá é frio.
Após 5km rodados.
- óia aí Vita, aqui tem manga.
- acho que é por causa da terra.
Mais alguns quilômetros rodados.
- óia aí, minha fia, mais pé de manga. Lá num da, de jeito nenhum.
- aqui é quente. Manga é de lugar quente.
Os passageiros seguem viajando.
- veja só, manguera. Uma porção de pé. Lá, onde nois mora, neca de pitipiriba de manga.
- vai se saber, lá num dá manga.
Mais uns quilômetros ficam para trás.
- viche, quanta manga. É manguera que num acaba. Lá...
- já falou que chega. Lá, não dá nem adianta plantá. Uuuuh, chega de ser repetiti...
- vou parar o carro e vocês descem, por favor!
- como assim, descer; temos que chegar lá para o almoço.
- você está sendo pago, prá quê?
- bem, então espere Eu dizer o porquê vou parar. É para vocês descerem e resolverem o problema dos pés de manga: se onde vocês moram, tem ou não, dá ou não, manga, são outros quinhentos; o que Eu não quero é ser testemunha de separação, bem como do pedido de divórcio. Estamos entendidos? Seguiremos viagem. Muito obrigado!
- tinha esquecido, lá tem uns pés, que dão mangas, né benzim?!
- ah, agora vêm com conversa mole! Num quero papo. Nem o motorista suporta sua chatice; haja estômago, tá loco?!
- sua mãe tá pior que um escorregão na casca de manga madura!