Carne Gera Carnal e Espírito Gera Espiritual - Comentário de João 3.6

Por João Calvino

“O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito.” (João 3.6)

“O que é nascido da carne”. Pelo raciocínio de contrários, Cristo argumenta que o reino de Deus está fechado para nós, a menos que uma entrada seja aberta para nós por um novo nascimento. Porque ele dá como garantido, que não podemos entrar no reino de Deus se não formos espirituais. Mas nada trazemos desde o ventre materno, senão uma natureza carnal. Segue-se portanto, que estamos naturalmente banidos do reino de Deus, e, tendo sido privados da vida celestial, permanecemos sob o jugo da morte espiritual. Além disso, quando Cristo argumenta aqui, que os homens devem nascer de novo, porque eles são apenas carne, ele, sem dúvida, abrange toda a humanidade sob o termo carne. Por carne, por conseguinte, entende-se neste lugar, não o corpo, mas a alma também, e, consequentemente, todas as partes da mesma.

Quando alguns teólogos restringem a palavra carne à parte que chamam de sensual, eles fazem isso em absoluta ignorância do seu significado; porque Cristo teria usado, neste caso, um argumento inconclusivo, que precisamos de um segundo nascimento, porque uma parte de nós é corrompida. Mas, se a carne é contrastada com o Espírito, como uma coisa corrupta é contrastada com uma que é incorruptível, uma coisa torta com uma que é reta, uma coisa poluída com uma que é sagrada, uma contaminada com uma que é pura, podemos facilmente concluir que toda a natureza do homem é condenada por um única palavra. Cristo, portanto, declara que o nosso entendimento e razão estão corrompidos, porque são carnais, e que todos os afetos do coração são maus e perversos, porque eles também são carnais.

Aqui surge uma questão; pois é certo que nesta natureza degenerada algum resquício dos dons de Deus ainda permanece; e, portanto, segue-se que não estamos em todos os aspectos corrompidos. A resposta é fácil. Os dons que Deus deixou para nós, desde a queda, se eles são avaliados em si mesmos, são, de fato dignos de louvor; mas, como o contágio da maldade está espalhado por todas as partes, nada será encontrado em nós que seja puro e livre de toda contaminação. Que possuímos naturalmente algum conhecimento de Deus, que alguma distinção entre o bem e o mal está gravada em nossa consciência, que nossas faculdades são suficientes para a manutenção da vida presente, que – em suma - somos em tantos aspectos superiores aos animais irracionais, que isto é excelente em si mesmo, na medida em que procede de Deus; mas em todos nós estas coisas estão completamente poluídas, da mesma maneira como o vinho que foi totalmente infectado e corrompido pelo gosto ofensivo do recipiente perde a agradabilidade do seu bom sabor, e adquire um sabor amargo e ruim. Porque tal conhecimento de Deus como agora permanece nos homens nada mais é do que uma fonte terrível de idolatria e de todas as superstições; o julgamento exercido para escolher e distinguir coisas está parcialmente cego e insensato, em parte imperfeito e confuso; todas as nossas faculdades fluem para a vaidade e ninharias; e a própria vontade, com impetuosidade furiosa, corre freneticamente para o que é mau. Assim, em toda a nossa natureza não permanece uma gota de pura retidão. Por isso, é evidente que deve ser formada pelo segundo nascimento, para que possamos ser equipados para o reino de Deus; e o significado das palavras de Cristo é que, como um homem nasce apenas carnal do ventre de sua mãe; ele deve ser formado de novo pelo Espírito, para que possa começar a ser espiritual.

A palavra Espírito é usada aqui em dois sentidos, a saber, por graça, e o efeito da graça. Porque em primeiro lugar, Cristo nos informa que o Espírito de Deus é o único autor de uma natureza pura e reta, depois, ele afirma, que somos espirituais, porque temos sido renovados pelo seu poder.

Traduzido e adaptado por Silvio Dutra.

João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 08/10/2014
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