Comentário de Judas 1.3,4

Por João Calvino

“3. Amados, procurando eu escrever-vos com toda a diligência acerca da salvação comum, tive por necessidade escrever-vos, e exortar-vos a batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos.

4. Porque se introduziram alguns, que já antes estavam escritos para este mesmo juízo, homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de Deus, e negam a Deus, único dominador e Senhor nosso, Jesus Cristo.”

3. “Procurando com toda a diligência”. Traduzi as palavras spouden poioumenos por “tomando cuidado”; literalmente, são: “fazendo diligência”. Mas muitos intérpretes explicam a sentença neste sentido, que um forte desejo constrangeu Judas a escrever, tal como dizemos acerca daqueles que estão sob a influência de um forte sentimento, que não podem governar ou conter a si mesmos. Nesse caso, de acordo com esses expositores, Judas estava sob uma espécie de necessidade, porque um desejo de escrever não lhe permitia descansar. Mas prefiro pensar que as duas sentenças são separadas; que, embora estivesse inclinado e solícito a escrever, uma necessidade o compeliu. Ele sugere então que, de fato, estava contente e ansioso por lhes escrever, mas a necessidade o urgiu a fazer isto, a saber, porque eram assaltados (segundo o que se segue) pelos infiéis, e precisavam estar preparados para combatê-los.

Então, em primeiro lugar, Judas testifica que sentiu tanta preocupação com a salvação deles, que ele mesmo quis, e de fato estava ansioso, por escrever-lhes;

e, em segundo lugar, para despertar a sua atenção, diz que o estado das coisas exigia que ele fizesse isso. Pois a necessidade acrescenta fortes estímulos. Se não tivessem sido avisados com antecedência de quão necessário era a sua exortação, eles poderiam se tornar preguiçosos e negligentes. Mas quando faz este prefácio, de que escreveu por conta da necessidade da situação deles, era o mesmo que se ele tivesse tocado uma trombeta para despertá-los do seu torpor.

“Acerca da salvação comum”. Algumas cópias acrescentam “vossa”, mas sem razão, penso eu, pois ele torna a salvação comum a eles e a si mesmo. E acrescenta não pouco peso à doutrina que é anunciada, quando alguém fala de acordo com os seus próprios sentimentos e experiência. É vão o que dizemos, se falamos da salvação para outros, quando nós mesmos não temos nenhum conhecimento real dela. Nesse caso, Judas confessava ser ele mesmo um mestre por experiência (por assim dizer) quando se associava aos santos na participação da mesma salvação.

“E exortar-vos”. Literalmente: “exortando-vos”. Mas como ele aponta o objetivo do seu conselho, a sentença deveria ser expressa assim. O que traduzi como: “ajudar a fé, batalhando”, significa o mesmo que lutar para reter a fé, e resistir corajosamente aos assaltos contrários de Satanás. Ele lhes faz recordar que, para perseverarem na fé, diversas batalhas devem ser enfrentadas, e mantida uma guerra constante. Ele diz que a fé foi uma vez dada, para que soubessem que a obtiveram para este fim, para que nunca fracassem ou caíssem.

4. “Porque se introduziram alguns”. Embora Satanás seja sempre um inimigo dos

santos, e nunca deixe de acossá-los, Judas lembra aqueles a quem estava escrevendo do estado de coisas naquele tempo. Agora Satanás, diz ele, ataca e vos incomoda de uma maneira peculiar. Por isso é necessário pegar em armas para resistir-lhe. Por aqui aprendemos que um pastor bom e fiel deveria considerar sabiamente o que o estado atual da Igreja exige, assim acomodando a sua doutrina às necessidades dela.

A palavra pareisedusan, que ele usa, denota uma insinuação furtiva e indireta, pela qual os ministros de Satanás enganam os incautos. Satanás semeia seu joio de noite, e enquanto os lavradores estão dormindo, a fim de corromper a semente de Deus. Ao mesmo tempo, ele nos ensina que esta é uma guerra interna, pois neste aspecto Satanás também é astuto, na medida em que suscita para causar dano aqueles que são do rebanho, a fim de que possam se introduzir mais facilmente.

“Já antes estavam escritos”. Ele invoca aquele julgamento, ou condenação, ou mente réproba, pela qual estes foram levados a perverter a doutrina da piedade; pois ninguém pode fazer tal coisa senão para a sua própria ruina. Mas a metáfora é aduzida desta circunstância porque o conselho eterno de Deus, pelo qual os fiéis são ordenados para a salvação, é designado como um livro. E quando os fiéis ouviram que estes estavam entregues à morte eterna, convinha que cuidassem para que não se envolvessem na mesma destruição. Ao mesmo tempo, o objetivo de Judas era elucidar o perigo, para que a novidade da coisa não perturbasse nem angustiasse nenhum deles. Pois se aqueles já estavam desde há muito ordenados para a condenação eterna, segue-se que a Igreja só é tentada ou testada de acordo com o conselho infalível de Deus.

“A graça de Deus.” Ele expressa agora mais claramente qual era o mal, pois diz que eles abusavam da graça de Deus, assim levando a si mesmos e a outros a tomarem uma liberdade impura e profana no pecado. Mas a graça de Deus se manifestou com um propósito muito diferente - ou seja, que, negando a impiedade e os prazeres mundanos, vivamos sóbria, justa e piamente neste mundo. Saibamos, então, que nada é mais pestilento do que homens desta sorte, que da graça de Cristo tomam uma capa para se indultarem na lascívia.

Porque ensinamos que a salvação é obtida pela misericórdia de Deus somente, os papistas nos acusam desse crime. Mas por que deveríamos usar palavras para refutar a afronta deles, visto que em toda parte urgimos o arrependimento, o temor a Deus e a novidade de vida, e visto que eles mesmos não apenas corrompem todo o mundo com os piores exemplos, mas também pelo seu ensinamento iníquo retiram do mundo a verdadeira santidade e a adoração pura a Deus? Entretanto, prefiro pensar que aqueles de quem Judas fala eram como os libertinos de nosso tempo, conforme se tornará mais evidente a partir do que se segue.

“Deus, único Senhor, ou, Deus, que é o único Senhor”. Algumas cópias antigas trazem: “Cristo, que é o único Deus e Senhor”. E, de fato, na Segunda Epístola de Pedro, somente Cristo é mencionado, e ali ele é chamado de Senhor. Mas ele quer dizer que Cristo é negado quando aqueles que foram redimidos por seu sangue tornam-se novamente vassalos do Diabo, e assim invalidam até onde podem esse preço incomparável. Então, para que Cristo nos retenha como seu tesouro peculiar, devemos nos lembrar de que ele morreu e ressuscitou por nós para que pudesse ter domínio sobre a nossa vida e morte.

João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 24/09/2014
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