Comentário de 2 Tessalonicenses 2.3

Por João Calvino

“Ninguém de maneira alguma vos engane; porque não será assim sem que antes venha a apostasia, e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição,” (2 Tessalonicenses 2.3)

“Ninguém vos engane”. A fim de que não prometessem a si mesmos infundadamente a vinda do alegre dia da redenção em tão curto espaço de tempo, Paulo lhes apresenta uma melancólica descrição quanto à futura dispersão da Igreja. Este discurso corresponde plenamente ao que Cristo fez em presença dos seus discípulos, quando estes lhe perguntaram a respeito do fim do mundo. Pois ele os exorta a se prepararem para suportar duros combates (Mt 24.6); e, depois de discursar acerca da mais terrível, prévia e inaudita das calamidades, pela qual a terra seria reduzida praticamente a um deserto, ele acrescenta que o fim ainda não está próximo, mas que estas coisas são os princípios das dores. Do mesmo modo, Paulo declara que os crentes devem exercer guerra por um longo período, antes de alcançarem um triunfo.

Contudo, aqui temos uma passagem notável, e que é, no mais alto grau, digna de observação. Esta era uma terrível e perigosa tentação, que poderia abalar até os mais confirmados, e fazê-los escorregar – ver a Igreja, que tivera, por meio de tantos trabalhos, se levantado gradualmente e com dificuldade até certa posição considerável, abater-se repentinamente, como se afundada por uma tempestade. Portanto, Paulo fortalece de antemão as mentes, não apenas dos tessalonicenses, mas de todos os que são piedosos, para que, quando a Igreja viesse a estar em uma condição dispersa, eles não ficassem alarmados, como se isto fosse algo novo e inesperado.

Como, porém, os intérpretes têm distorcido esta passagem de várias maneiras, devemos antes de tudo nos esforçar por determinar o verdadeiro sentido de Paulo. Ele afirma que o dia de Cristo não virá, enquanto o mundo não tiver caído em apostasia, e o reinado do Anticristo ser estabelecido na Igreja; pois, quanto à exposição que alguns têm dado a respeito desta passagem, como se referindo à queda do Império Romano, é simplória demais para exigir uma refutação extensa. Também fico surpreso de que tantos escritores, em outros aspectos instruídos e perspicazes, tenham incorrido em erro em um assunto que é tão fácil – não fosse que, quando alguém comete um erro, outros o sigam em bandos sem consideração. Portanto, Paulo emprega o termo apostasia no sentido de um abandono traiçoeiro de Deus, e isto não por parte de um ou alguns indivíduos, e sim como algo que se estenderia em toda a parte entre uma grande multidão de pessoas. Pois, quando apostasia é mencionada sem qualquer complemento, não pode ser restringida a poucos. Ora, ninguém pode ser denominado apóstata, senão aqueles que anteriormente fizeram uma confissão acerca de Cristo e do evangelho. Portanto, Paulo prediz certa revolta geral da Igreja visível. “A Igreja deve ser reduzida a um assustador e horrível estado de ruína, antes que sua plena restauração seja efetuada.”

A partir disto podemos prontamente deduzir quão útil é esta predição de Paulo , pois poderia parecer que não pudesse ser um edifício de Deus, aquilo que fosse subitamente subvertido, e permanecesse por tanto tempo em ruínas, se Paulo não tivesse muito antes sugerido que isto seria assim. Mais ainda, muitos nos dias atuais, quando consideram consigo mesmos a dispersão de longo tempo da Igreja, começam a vacilar, como se isto não tivesse sido determinado pelo propósito de Deus. Os romanistas também, com vistas a justificar a tirania do seu ídolo, fazem uso deste pretexto – que não era possível que Cristo desamparasse a sua esposa. Contudo, os fracos têm algo aqui em que se apoiar, quando aprendem que o estado inconveniente das coisas que contemplam na igreja foi há muito predito; enquanto, por outro lado, a impudência dos romanistas é abertamente desmascarada, porquanto Paulo declara que ocorrerá uma revolta, quando o mundo for trazido sob a autoridade de Cristo. Ora, veremos em breve por que o Senhor permitiu que a Igreja, ou ao menos o que parecia ser tal, decaísse de maneira tão vergonhosa.

“Se manifeste o homem do pecado”. Não era melhor do que uma fábula de velhas o que se concebeu a respeito de Nero; que ele fora arrebatado do mundo, destinado a voltar novamente para afligir a Igreja através da sua tirania; e, contudo, as mentes dos antigos estavam tão enfeitiçadas, que eles imaginavam que Nero seria o Anticristo. Contudo, Paulo não fala só de um indivíduo, mas de um reino, que seria apoderado por Satanás, para que ele estabelecesse um trono de abominação em meio ao templo de Deus, o que vemos cumprido no papado. É verdade que a rebelião se espalhou mais extensamente, pois Maomé, como era um apóstata, desviou de Cristo os turcos, seus seguidores. Todos os hereges têm quebrado a unidade da Igreja pelas suas seitas, e assim tem havido correspondente número de rebeliões contra Cristo.

Paulo, contudo, ao dar o alerta de que haveria tal dispersão, que a maior parte se revoltaria contra, acrescenta algo mais sério – que haveria tal confusão, que o vigário de Satanás manteria o poder supremo na Igreja, e a presidiria ali no lugar de Deus. Ora, ele descreve esse reinado de abominação sob o nome de uma única pessoa porque é apenas um reinado, embora um suceda ao outro. Meus leitores agora entendem que todas as seitas pelas quais a Igreja tem sido reduzida desde o princípio têm sido tantas correntes de rebelião que começaram a drenar a água do curso original; mas que a seita de Maomé foi como que um jorro impetuoso de água, que removeu quase a metade da Igreja pela sua violênca. Restava, ainda, que o Anticristo infectasse a parte restante com o seu veneno. Assim, vemos com os nossos próprios olhos que esta predição memorável de Paulo tem se confirmado pelo evento.

Na exposição que apresento, não há nada de forçado. Os crentes naquele tempo sonhavam que seriam transportados para o céu, após terem sofrido dificuldades durante um breve período de tempo. No entanto, pelo contrário, Paulo prediz que, depois de terem inimigos estranhos molestando-os por algum tempo, eles teriam de suportar mais males dos inimigos em casa, porquanto muitos daqueles que fizeram uma confissão de dedicação a Cristo seriam levados a abjeta traição, e porquanto o próprio templo de Deus seria contaminado por sacrílega tirania, de modo que o maior inimigo de Cristo exerceria o seu domínio ali. O termo manifestação é tomado aqui para denotar manifesta posse da tirania – como se Paulo tivesse dito que o dia de Cristo não viria enquanto esse tirano não tivesse se manifestado abertamente, e tivesse, por assim dizer, propositalmente subvertido toda a ordem da Igreja.

João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 09/09/2014
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