Comentário de 2 Tessalonicenses 2.4
Por João Calvino
“O qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus.” (2 Tessalonicenses 2.4)
“O qual se opõe, e se levanta”. Os dois epítetos – homem do pecado e filho da perdição – sugerem, em primeiro lugar, quão terrível seria a confusão, a fim de que a sua indecência não desencorajasse as mentes fracas; e ainda, eles tendem a incitar os que são piedosos a um sentimento de abominação, para que não se degenerem com os demais. Contudo, Paulo traça agora, como em um quadro, um surpreendente retrato do Anticristo; pois pode-se facilmente deduzir a partir destas palavras qual é a natureza do seu reino, e de que coisas consiste. Pois, quando o chama de adversário, quando diz que ele reivindicará para si as coisas que pertencem a Deus, de modo que é adorado no templo como Deus; ele põe o seu reino em oposição direta ao reino de Cristo. Por isso, assim como o reino de Cristo é espiritual, do mesmo modo deve haver essa tirania sobre as almas, a fim de rivalizar o reino de Cristo. Também o encontraremos depois atribuindo-lhe o poder de enganar, por meio de doutrinas ímpias e pretensos milagres. Se, portanto, quereis conhecer o Anticristo, deveis vê-lo como diametralmente oposto a Cristo.
Onde traduzi: “tudo o que é chamado Deus”, a leitura mais comumente recebida entre os gregos é: “todo o que é chamado”. Contudo, pode-se conjecturar, tanto a partir da tradução antiga, como de alguns comentários gregos, que as palavras de Paulo foram corrompidas. O equívoco, também, de uma única letra prontamente se introduziu, especialmente quando o formato da letra era muito semelhante; pois, onde estava escrito pan to (tudo), algum copista, ou leitor muito atrevido, transformou em “panta” (todos). Esta diferença, porém, não é de tanta importância para o sentido, pois Paulo, sem sombra de duvida, quer dizer que o Anticristo tomaria para si as coisas que pertencem a Deus somente, de modo que se exaltaria acima de toda reivindicação divina, para que toda a religião e todo o culto a Deus estivessem aos seus pés. Neste caso, a expressão: tudo o que se chama Deus, é equivalente a tudo o que se reconhece como Divindade, e sebasma, ou seja, aquilo em que consiste a veneração devida a Deus.
Aqui, porém, o assunto tratado não é propriamente o nome de Deus, e sim a sua majestade e adoração; e, em geral, tudo o que ele reivindica para si. “A verdadeira religião é aquela pela qual o verdadeiro Deus é exclusivamente adorado; isto, o filho da perdição transferirá para si”. Ora, todo aquele que aprendeu pela Escritura quais são as coisas que pertencem mais especialmente a Deus, e, por outro lado, observar o que o papa reivindica para si – ainda que fosse um menino de dez anos de idade – não terá grande dificuldade em reconhecer o Anticristo. A Escritura declara que Deus é o único Legislador (Tg 4.12) que pode salvar e destruir; o único Rei, cujo ofício é governar as almas pela sua palavra. Ela o apresenta como o autor de todos os ritos sagrados; ela ensina que a justiça e a salvação devem ser buscadas de Cristo somente; e designa, ao mesmo tempo, o meio e o modo. Não existe nenhuma destas coisas que o papa não afirme estar sob sua autoridade. Ele se orgulha de que cabe a ele impor às consciências as leis que lhe pareçam boas, e sujeitá-las ao castigo eterno. Quanto aos sacramentos, ou ele institui novos, de acordo com a sua própria inclinação, ou corrompe e deforma aqueles que foram instituídos por Cristo – sim, descarta-os completamente, para por em lugar deles os sacrilégios que inventou. Ele inventa meios de alcançar a salvação que estão completamente em desacordo com a doutrina do Evangelho; e, por fim, não hesita em mudar toda a religião de acordo com a sua vontade. Dizei-me, o que é exaltar-se acima de tudo o que se chama Deus, se o papa não faz isto? Quando deste modo priva a Deus de sua honra, ele não lhe deixa nada além de um título vazio de Divindade, enquanto transfere para si todo o seu poder. E é isto o que Paulo acrescenta logo depois, que o filho da perdição quererá parecer Deus. Pois, conforme foi dito, ele não insiste no simples termo Deus, mas sugere que o orgulho do Anticristo seria tal que, levantando-se acima do número e posição dos servos, e subindo na tribuna de Deus, reinaria, não com autoridade humana, mas divina. Pois sabemos que tudo o que é levantado em lugar de Deus é um ídolo, ainda que não traga o nome de Deus.
“No templo de Deus”. Apenas por este termo há uma refutação suficiente do erro; mais ainda, da estupidez daqueles que consideram que o papa seja o Vigário (o que está no lugar de alguém) de Cristo, pelo fato de ter o seu trono na Igreja, seja de que maneira possa se conduzir; pois Paulo não põe o Anticristo em nenhum outro lugar senão no próprio santuário de Deus. Pois este não é um inimigo estranho, mas doméstico, que se opõe a Cristo sob o próprio nome de Cristo. Mas, questiona-se, como pode a Igreja ser apresentada como covil de tantas superstições, ao passo que foi destinada para ser a coluna da verdade (1 Tm 3:15)? Respondo que ela é assim representada, não pelo fato de reter todas as qualidades da Igreja, e sim porque tem algo dela remanescente. Portanto, admito que esse é o templo de Deus em que o papa tem domínio, mas ao mesmo tempo profanado por inúmeros sacrilégios.
(Nota do Pr Silvio Dutra: Calvino se refere ao papa como sendo o Anticristo nem tanto pela terrível perseguição que a Igreja Romana da época realizou contra ele e todos os reformadores, que tinham em vista trazer o evangelho à sua pureza original na vida dos crentes; mas certamente assim o identificou porque por séculos a citada igreja constituía o poder soberano político e religioso em todo o mundo, de modo que até mesmo o registro de pessoas, quer de nascimentos, casamentos e óbitos não era realizado pelo estado, mas pela igreja. Além disso, tantos foram os acréscimos sem respaldo na doutrina bíblica que foram acrescentados na prática devocional da citada igreja, que o evangelho ficou grandemente transfigurado, a ponto de se chegar ao extremo de se colocar a confiança da salvação muito mais nas obras de homens do que na mera fé em Jesus Cristo. Chegou-se mesmo a ensinar que a salvação poderia ser comprada por meio de indulgências dadas pelo papa àqueles que as comprassem com certa quantia em dinheiro ou propriedades. Todavia, por estarmos vivendo quinhentos anos depois de Calvino, muitas luzes têm si derramadas sobre estas profecias relativas ao fim dos tempos, e sabemos agora que Satanás tem se valido de muitos poderes seculares, aparte do religioso, para destruir o modo de vida judaico-cristão, e tudo leva a crer que o Anticristo será um governante mundial, apoiado por uma igreja ecumênica também mundial, cujo líder é identificado como sendo o Falso Profeta no livro de Apocalipse; e nesta gigante igreja mundial serão achados também protestantes e todo tipo de confissões cristãs que se aliarão ao erro e se afastarão da sã doutrina bíblica. Na verdade isto já está acontecendo a passos largos em nossos dias, e muitos têm sido enganados por não darem ouvido às Escrituras, senão a ensinos de homens e de demônios.)