Comentário de João 1.16

Por João Calvino

“Porque todos nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça.” (João 1.16)

“E da sua plenitude”. João começa agora a pregar sobre o ofício de Cristo, que contém em si uma abundância de todas as bênçãos, para que nenhuma parte da salvação devesse ser procurada em qualquer outro lugar. É verdade, de fato, a fonte da vida, a justiça, virtude e sabedoria, estão com Deus, mas para nós é uma fonte oculta e inacessível. Mas uma abundância dessas coisas é exibida a nós em Cristo, para que nos seja permitido recorrer a ele; porque ele está pronto para fazê-las fluir para nós, desde que abramos um canal pela fé. Ele declara, em geral, que fora de Cristo não devemos buscar qualquer coisa boa, embora esta sentença consista de várias cláusulas. Primeiro, ele mostra que estamos todos totalmente destituídos e vazios de bênçãos espirituais; porque a abundância que existe em Cristo se destina a suprir nossa carência, para aliviar nossa pobreza, para saciar a nossa fome e sede. Em segundo lugar, ele nos adverte que, assim que nos temos afastado de Cristo, é vão para nós buscarmos uma única gota de felicidade, porque Deus determinou que tudo o que é bom deve residir somente nele. Assim, encontraremos anjos e os homens a secar, o céu vazio, a terra improdutiva, e, em suma, tudo não terá qualquer valor, se quisermos participar dos dons de Deus de qualquer outra forma que não através de Cristo. Em terceiro lugar, ele nos assegura que não haverá qualquer razão para temer qualquer coisa que seja, desde que possamos tirar da plenitude de Cristo, que é em todos os aspectos; tão completo, que vamos experimentar ser uma fonte inesgotável verdadeiramente; e João inclui a si mesmo nisto com os demais, não por uma questão de modéstia, mas para tornar mais evidente que nenhum homem é exceção quanto a isto.

Na verdade, é incerto se ele fala em geral de toda a raça humana, ou se ele se refere apenas àqueles que, posteriormente à manifestação de Cristo na carne, foram feitos mais plenamente participantes das suas bênçãos. Todos os piedosos, sem dúvida, que viveram sob a Lei, tiraram da mesma plenitude; mas, como João imediatamente depois distingue entre diferentes períodos, é mais provável que aqui ele especialmente recomende quão rica abundância de bênçãos Cristo exibiu na sua vinda. Porque sabemos que, nos termos da Lei os dons de Deus foram mais moderadamente provados, mas que, quando Cristo se manifestou em carne, eles foram vertidos, por assim dizer, com uma mão cheia, até à saciedade. Não que qualquer um de nós tenha obtido uma maior abundância da graça do Espírito do que Abraão, mas eu falo da dispensação comum de Deus, e da maneira e forma de distribuição. João Batista, que pode convidar mais livremente seus discípulos para virem a Cristo, declara que nele é depositada para todos uma abundância das bênçãos das quais eles são destituídos. E, no entanto, se alguém optar por estender o significado mais além, não haverá absurdo ao fazê-lo; ou melhor, ele concordará melhor com o tom do discurso, que todos os pais, desde o começo do mundo, retiraram de Cristo todos os dons que possuíram; porque a Lei foi dada por Moisés, mas eles não puderam obter a graça por ela. Mas eu já disse o que me parece ser o ponto de vista preferível; ou seja, que João aqui nos compara com os patriarcas, de modo a aumentar, por meios de comparação, o que nos tem sido dado.

“E, graça sobre graça”. De que maneira Agostinho explica essa passagem é bem conhecido - que todas as bênçãos que Deus nos concede de tempos em tempos, e para a extensão da vida eterna, não são concedidas como recompensa devido aos nossos méritos, mas que procede de pura liberalidade com que Deus assim recompensa primeiro com a graça, e nos coroa com os seus dons. Isto é piedosa e criteriosamente dito, mas nada tem a ver com a presente passagem. O significado seria mais simples se você tivesse que tomar a palavra “porque” do início do versículo, comparativamente, como significando, que sejam quais forem as graças que Deus nos concede, procede igualmente da mesma fonte (Cristo). Isto pode ser também tomado como apontando a causa final, pela qual agora recebemos a graça, para que Deus possa um dia completar a obra da nossa salvação, que será o cumprimento da graça. De minha parte, concordo com a opinião daqueles que dizem que são regados com as graças derramadas a partir de Cristo; porque o que recebemos de Cristo ele não derrama sobre nós como sendo Deus, mas o Pai, comunicou a Ele o que deveria fluir para nós como através de um canal. Esta é a unção com o qual ele foi ungido, para que pudesse nos ungir com a mesma. Por isso, também, que é chamado Cristo (o Ungido), e nós somos chamados cristãos.

Traduzido e adaptado por Silvio Dutra.

João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 06/09/2014
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