Comentário de João 1.1
Por João Calvino
“No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus.” (João 1.1)
“No princípio era o Logos”. Nesta introdução João afirma a eterna divindade de Cristo, de maneira a nos informar que ele é o Deus eterno, que foi manifestado na carne (1 Timóteo 3:16). O propósito é o de mostrar que isto foi necessário para que a restauração da humanidade pudesse ser realizada pelo Filho de Deus, uma vez que com o seu poder todas as coisas foram criadas, e que somente ele sopra em todas as criaturas vida e energia, de forma que elas permanecem no seu estado; e no próprio homem ele tem dado uma notável exibição tanto de seu poder quanto da sua graça, e mesmo posteriormente à queda do homem não deixou de mostrar libertação e bondade para com a sua posteridade. E esta doutrina é altamente necessária de ser conhecida; porque desde que fora de Deus não devemos procurar a vida e a salvação, como poderia a nossa fé descansar em Cristo, se não soubéssemos com certeza o que é ensinado aqui? Com estas palavras, portanto, o evangelista nos assegura que não somos afastados do único e eterno Deus, quando cremos em Cristo, e da mesma forma que a vida agora é restaurada para os mortos pela bondade daquele que foi a fonte e a causa da vida, quando a natureza do homem era ainda incorrupta.
Como o evangelista chama o Filho de Deus, o Logos, a simples razão parece-me ser, em primeiro lugar, porque ele é a Sabedoria eterna e a Vontade de Deus; e, em segundo lugar, porque ele é a imagem viva de Seu propósito; pois, assim como da faculdade da fala pode ser dito ser entre os homens a imagem da mente, por isso não é inapropriado aplicar isso a Deus, e dizer que Ele se revela a nós pelo seu Logos. As outras significações da palavra grega logos não se aplicam tão bem. Ela significa, sem dúvida, definição, razão e cálculo; mas estou indisposto a atender ao hermetismo da filosofia além da medida da minha fé. E nós percebemos que o Espírito de Deus está muito longe de aprovar tais sutilezas que, balbuciando conosco, por seu próprio silêncio, ele clama em voz alta com que sobriedade devemos lidar com esses mistérios sublimes.
Agora, como Deus, ao criar o mundo, revelou-se por esse Logos, por isso, ele anteriormente estava escondido com ele mesmo, de modo que há uma dupla relação; a primeira para com Deus, e a última para com os homens. Serveto, um arrogante pertencente à nação espanhola, inventa a declaração, que este eterno Logos começou a existir naquele momento, quando ele foi exibido na criação do mundo, como se ele não existisse antes de seu poder ter sido dado a conhecer pela operação externa. Muito diferente é o que o Evangelista ensina nesta passagem; pois ele não atribui ao Logos um início de tempo, mas diz que ele era desde o princípio, e, assim, ultrapassa todas as eras. Uma objeção a isto foi levantada anteriormente pelos arianos, ou seja, que no princípio Deus criou o céu e a terra (Gênesis 1.1), que, no entanto, não era o Logos eterno, porque a palavra refere-se a início e a ordem, em vez de denotar a eternidade. Mas o evangelista responde a essa calúnia, quando diz: “E o Logos estava com Deus.” Se o Logos começou a existir em algum momento, eles devem descobrir alguma sucessão de tempo em Deus; e, sem dúvida, por esta cláusula João visa a distingui-lo de todas as coisas criadas. Porque muitas perguntas poderiam surgir, onde estava esse Logos? Como é que ele exerce seu poder? Qual era a sua natureza? Como é que ele pode ser conhecido? O evangelista, portanto, declara que não devemos limitar nossa visão ao mundo e às coisas criadas; pois ele esteve sempre unido a Deus, antes que o mundo existisse. Agora, quando os homens datam o início da origem do céu e da terra, eles não reduzem Cristo à ordem comum do mundo, da qual ele é excluído em termos expressivos por esta passagem? Por este procedimento eles apresentam um insulto flagrante não só para o Filho de Deus, mas, para seu eterno Pai, que eles privaram de sua sabedoria. Se não temos a liberdade de conceber Deus sem a sua sabedoria, isto deve ser reconhecido, que não devemos procurar a origem do Logos em algum lugar a não ser na Sabedoria Eterna de Deus.
Serveto objeta que o Logos não pode ser admitido como tendo existido antes de Moisés ter falado de Deus como um orador. Como se ele não subsistisse em Deus, porque ele não foi feito publicamente conhecido, ou seja, como se ele não existisse, até que começou a aparecer externamente. Mas cada pretexto para fantasias escandalosamente absurdas desta descrição é cortado pelo evangelista, quando afirma, sem reservas, que o Logos estava com Deus; porque ele expressamente nos retira de cada momento de tempo.
Aqueles que inferem a partir do pretérito imperfeito do Logos, que é aqui usado, que denota existência continuada, têm pouca força de argumento para apoiá-los. “Foi”, eles dizem, é uma palavra mais apropriada para expressar a ideia de sucessão ininterrupta, do que se João tivesse dito, “tem sido”. Mas em questões tão pesadas devemos empregar argumentos mais sólidos; e, na verdade, o argumento que eu trouxe deve ser contado por nós como suficiente; ou seja, que o evangelista nos envia aos segredos eternos de Deus, para que possamos aprender que o Logos era, como estava escondido, antes de se revelar na estrutura exterior do mundo. Justamente, por isso, Agostinho faz a observação, que este princípio, que agora é mencionado, não tem começo; pois, embora, na ordem da natureza, o Pai veio antes de sua Sabedoria, e aqueles que concebem qualquer ponto do tempo, quando ele veio antes de sua Sabedoria, privam-no de sua glória. E esta é a geração eterna, a qual, durante um período de extensão infinita antes da fundação do mundo, estava escondida em Deus, por assim dizer - a qual, por uma longa sucessão de anos, estava obscurecida pela sombra para os patriarcas sob a Lei, e por fim foi mais plenamente manifestada em carne.
Eu me pergunto o que induziu os latinos a traduzirem “ho logos” por “Verbum” (a Palavra); porque isto teria sido mais a tradução de “to rhema”. Mas concedendo que eles tinham alguma razão plausível, ainda não pode ser negado que Sermo (o discurso) teria sido muito mais apropriado. Por isso é evidente, que a tirania bárbara foi exercida pelos teólogos da Sorbonne, que brincaram e saíram a Erasmo, de tal maneira, porque ele tinha mudado uma simples palavra para melhor.
“E o Logos estava com Deus”. Já dissemos que o Filho de Deus é, assim, colocado acima do mundo e, acima de todas as criaturas, e é declarado ter existido antes de todas as eras. Mas, ao mesmo tempo, esse modo de expressão atribui a ele uma personalidade distinta da do Pai; pois teria sido um absurdo o Evangelista dizer que o Logos estava sempre com Deus, se ele não tivesse algum tipo de subsistência peculiar a si mesmo em Deus. Esta passagem serve, portanto, para refutar o erro de Sabélio; pois mostra que o Filho é distinto do Pai. Eu já observei que devemos ser sóbrios em pensamento, e modestos ao falar, sobre tais mistérios elevados. E ainda os antigos escritores da Igreja foram desculpáveis, quando, achando que eles não podiam de qualquer outra forma manter a sã doutrina pura em oposição à fraseologia perplexa e ambígua dos hereges, que eram compelidos a inventar algumas palavras, que afinal não tinham nenhum outro significado do que aquilo que é ensinado nas Escrituras. Eles disseram que há três Hipóstases, ou subsistências, ou pessoas, na única e simples essência de Deus. A palavra; hupostasis (hipóstase) ocorre neste sentido em Hebreus 1:3, à qual corresponde a palavra latina Substaatia, (substância) como ela é empregada por Hilary. As pessoas (ta Prosopa) foram chamadas por eles de propriedades distintas em Deus, que se apresentam para o ponto de vista de nossas mentes; como diz Gregório Nazianzeno: "Eu não consigo pensar no Único (Deus) sem ter as Três (pessoas) brilhando ao meu redor.”
“E o Logos era Deus”. Para que não houvesse qualquer dúvida remanescente sobre a essência divina de Cristo, o evangelista claramente afirma que ele é Deus. Agora, já que há um só Deus, segue-se que Cristo é da mesma essência com o Pai, e ainda que, em alguns aspectos, ele é distinto do Pai. Mas da segunda cláusula já temos falado. Quanto à unidade da essência divina, Arius mostrou prodigiosa maldade, quando, para evitar ser forçado a reconhecer a eterna Divindade de Cristo, ele tagarelou sobre não sei qual divindade imaginária; mas da nossa parte, quando somos informados de que o Logos era Deus, que direito temos de colocar por mais tempo em questão a sua essência eterna?
Traduzido e adaptado por Silvio Dutra.