Inflamados pela Verdade

 
Por João Calvino
 
Temos de ser inflamados para seguir a Deus aonde quer formos por Ele chamados. Sua Palavra tem de ter tal autoridade para conosco como ela merece, e, havendo-nos retirado deste mundo, temos de nos sentir arrebatados na busca da vida santificada. Porém, é mais que estranho que, embora a luz de Deus esteja brilhando mais radiantemente que nunca, haja uma lamentável falta de zelo. Em resumo, é impossível negar que é para nossa grande vergonha, para não dizer temível condenação, que conhecemos tão bem a verdade de Deus e temos tão pouca coragem em defendê-la.
 
Acima de tudo, quando olhamos para os mártires do passado, nos envergonhamos de nossa covardia! Em sua maioria não eram pessoas muito versadas nas Santas Escrituras para poderem disputar com todos os assuntos. Eles sabiam que havia um Deus, a quem convinham adorar e servir; que haviam sido remidos pelo sangue de Jesus Cristo a fim de colocarem a confiança de salvação nEle e em sua graça; e que todas as invenções dos homens, sendo mera inutilidade e lixo, eles deviam condenar todas as idolatrias e superstições. Numa palavra, sua teologia era, em substância, esta: Há um Deus que criou todo o mundo e nos declarou sua vontade por Moisés e pelos profetas, e, finalmente, por Jesus Cristo e seus apóstolos; e temos um Redentor exclusivo, que nos comprou por seu sangue e por cuja graça esperamos ser salvos. Todos os ídolos do mundo são amaldiçoados e merecem abominação.
 
Com um sistema abarcando nenhum outro ponto que não esses, eles foram corajosamente às chamas ou a qualquer outro tipo de morte. Não entravam de dois em dois ou de três em três, mas em tamanhos grupos, cujo número dos que caíram pelas mãos dos tiranos é quase infinito.
 
O que então deve ser feito para inspirar nosso peito com a verdadeira coragem? Temos, em primeiro lugar, de considerar quão preciosa é a confissão de nossa fé aos olhos de Deus. Pouco sabemos o quanto Deus preza isso, se nossa vida, que não é nada, é estimada mais altamente por nós. Quando isso se dá, manifestamos maravilhoso grau de estupidez. Não podemos salvar nossa vida à custa de nossa confissão sem reconhecermos que a mantemos em mais alta estima que a honra de Deus e a salvação de nossa alma.
 
Um pagão poderia dizer: "Foi coisa miserável salvar a vida deixando as únicas coisas que tornavam a vida desejável!" E, não obstante, tal indivíduo e outros como ele nunca souberam por que propósito os homens são colocados no mundo, e por que vivem aqui. Sabemos muito bem qual deve ser a principal meta de vida, isto é, glorificar a Deus, para que Ele seja nossa glória. Quando isso não é feito, ai de nós! Não podemos continuar vivendo por um único momento na terra sem amontoarmos outras maldições  sobre nossas cabeças. Contudo, não estamos envergonhados de obter alguns dias para nos enlanguescer aqui embaixo, renunciando o Reino eterno ao nos separarmos dEle, por cuja energia somos sustentados em vida.
 
Mas como a perseguição sempre é severa e amarga, consideremos: Como e por quais meios os cristãos podem se fortalecer com paciência, para resolutamente exporem a vida pela verdade de Deus. O texto que lemos em voz alta, quando corretamente compreendido, é suficiente para nos induzir a agirmos assim. O apóstolo diz: ''Saiamos da cidade para o Senhor Jesus, levando seu vitupério". Em primeiro lugar, Ele nos lembra que, embora as espadas não sejam desembainhadas contra nós, nem o fogo aceso para nos queimar, não podemos ser verdadeiramente unidos ao Filho de Deus, enquanto estamos arraigados neste mundo. Portanto, um cristão, mesmo em repouso, sempre tem de ter um pé pronto a marchar para a batalha, e não só isso, mas tem de ter seus afetos retirados do mundo, ainda que o corpo esteja habitando aqui.
 
Enquanto isso, para consolar nossas enfermidades e mitigar a vexação e tristeza que a perseguição nos causa, é-nos oferecida uma boa recompensa. Sofrendo pela causa de Deus, estamos caminhando passo a passo após o Filho de Deus e o temos por nosso Guia. Fosse dito simplesmente que para sermos cristãos tivéssemos de corajosamente passar por todos os insultos do mundo, encontrar a morte em todo momento e da maneira que Deus se agradasse designar, teríamos aparentemente algum pretexto para replicar. É um caminho desconhecido para irmos na dúvida. Mas quando somos ordenados a seguir o Senhor Jesus, sua direção é muito boa e honrada para ser recusada.
 
Somos tão melindrosos quanto à disposição de suportar qualquer coisa? Então temos de renunciar a graça de Deus pela qual Ele nos chamou à esperança de salvação. Há duas coisas que não podem ser separadas — ser membro de Cristo e ser provado por muitas aflições. Quem dera fosse realmente fácil, mesmo para Deus, nos coroar imediatamente sem exigir que sustentássemos qualquer combate. Mas assim como é seu prazer que Cristo reine em meio aos seus inimigos, assim também é sua vontade que nós, sendo colocados no meio deles, soframos a opressão e violência que nos infligem até que Ele nos liberte. Sei, de fato, que a carne esperneia quando deve ser levada a este ponto, mas não obstante a vontade de Deus tem de sobrepor-se.
 
Em tempos passados, muitas pessoas, para obter simples coroas de folhas, não recusavam o trabalho duro, a dor e a dificuldade. Até mesmo a morte não lhes era grande preço, e, ainda assim, cada um deles disputava uma corrida, não sabendo se iria ganhar ou perder o prêmio. Deus nos oferece a coroa imortal pela qual nos tornarmos participantes da sua glória.
 
Ele não quer dizer que devemos lutar a esmo, mas todos temos a promessa do prêmio pelo qual nos empenhamos. Temos algum motivo para nos recusarmos a lutar? Achamos que foi dito em vão: "Se morremos com Jesus, também com ele viveremos"? Nosso triunfo está preparado, e contudo fazemos tudo o que podemos para evitar o combate. para não deixar meios sem serem empregados que sejam adequados para nos estimular, Deus coloca diante de nós Promessas, de um lado, e Ameaças, do outro. Sentindo que as promessas não têm influência suficiente, fortaleçamo-nos acrescentando as ameaças. É verdade que devemos ser obstinados no extremo de não pôr mais fé nas promessas de Deus, quando o Senhor Jesus diz que Ele nos confessará como seus diante de seu Pai, contanto que o confessemos diante dos homens.
 
Mas se Deus não pode nos alcançar por meios gentis, não devemos ser meros obstáculos se suas ameaças também falham? Jesus convoca todos aqueles que, por medo da morte temporal, negam a verdade, a comparecerem no tribunal de seu Pai, e diz que então o corpo e a alma serão entregues à perdição. Em outra passagem, Ele afirma que negará todos que o tiverem negado diante dos homens. Estas palavras, se não somos completamente impérvios para sentir, bem que podem fazer nossos cabelos se levantarem enfim!
 
É em vão alegarmos que piedade deve nos ser mostrada, já que nossas naturezas são tão delicadas; pois é dito, pelo contrário, que Moisés, tendo buscado a Deus pela fé, foi fortalecido para não se entregar sob tentação. Portanto, quando somos flexíveis e fáceis de dobrar, é sinal manifesto. Não estou dizendo que não temos zelo, nem firmeza, mas que não sabemos nada de Deus ou de seu Reino. Há dois pontos a considerar. O primeiro é que todo o Corpo da Igreja em geral sempre esteve, e até ao fim estará, sujeito a ser afligido pelos ímpios. Vendo como a Igreja de Deus é pisoteada nos dias atuais pelos orgulhosos indivíduos mundanos, como um late e outro morde, como torturam, como conspiram contra ela. como ela é assaltada incessantemente por cães raivosos e bestas selvagens, não nos esqueçamos de que a mesma coisa foi feita em todos os tempos passados.
 
Enquanto isso, o assunto de suas aflições sempre foi afortunado. Em todos os eventos, Deus fez com que, embora fosse oprimida por muitas calamidades, ela nunca tenha sido completamente esmagada; como está escrito: "Os ímpios com todos os seus esforços não tiveram sucesso no que intentaram". O apóstolo Paulo se gloria no fato e mostra que este é o curso que Deus, em misericórdia, sempre toma. Ele diz: "Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos; trazendo sempre por toda parte a mortificação do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de Jesus se manifeste também em nossos corpos" (2 Co 4.8-10).
 
Só menciono brevemente neste sermão para ir ao segundo ponto, que está mais a nosso propósito, que devemos tirar vantagem dos exemplos particulares dos mártires que foram antes de nós. Não são limitados a dois ou três, mas são, como diz o apóstolo, "uma tão grande nuvem". Com esta expressão, ele intima que o número é tão grande que deve ocupar toda nossa visão. Para não ser tedioso, mencionarei somente os judeus, que foram perseguidos pela verdadeira religião, não apenas sob a tirania do rei Antioco, mas também um pouco depois da sua morte. Não podemos alegar que o número dos sofredores foi pequeno, pois formava um grande exército de mártires. Não podemos dizer que consistia em profetas a quem Deus tinha separado das pessoas comuns, pois mulheres e criancinhas faziam parte do grupo. Não podemos dizer que eles escaparam por pouca coisa, porque foram torturados tão cruelmente quanto possível. Por conseguinte, ouvimos o que o apóstolo diz: "Uns foram torturados, não aceitando o seu livramento, para alcançarem uma melhor ressurreição; e outros experimentaram escárnios e açoites, e até cadeias e prisões. Foram apedrejados, serrados, tentados, mortos a fio de espada; andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados (homens dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos, e montes, e pelas covas e cavernas da terra.” (Hb 11.35-38)


 
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João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 17/08/2014
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