Sofrendo pela Verdade
Por João Calvino
“e, por isso, estou sofrendo estas coisas; todavia, não me envergonho, porque sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele Dia.” (2 Tim 1.12)
“Por cuja causa sofro também essas coisas”. Sabe-se sobejamente que o furor dos judeus, inflamado contra Paulo, era mais por esta causa do que por qualquer outra, ou seja, por ele ter dado aos gentios uma participação comum do evangelho. Por cuja causa se refere a toda a passagem precedente, e não deve ser restringida só à última frase sobre os gentios. Então apresenta dois argumentos a fim de impedir que sua prisão de alguma forma trouxesse prejuízo à sua autoridade. Primeiro, ele mostra que a causa de sua prisão, longe de ser uma desgraça, era-lhe, ao contrário, uma honra, visto que fora aprisionado não por algum mau procedimento, mas porque obedecera ao chamado divino. É-nos um inaudito conforto quando podemos receber os injustos juízos humanos com uma consciência íntegra. Segundo, ele argumenta que não há nada de vexatório em sua prisão, já que sua esperança é que haveria um resultado feliz. O homem que se vê armado com tal defesa pode com certeza vencer as grandes provações, por mais graves que sejam. E ao dizer, não me envergonho, ele usa seu próprio exemplo para encorajar outros a demonstrarem a mesma ousadia.
“Porque sei em quem tenho crido”. Eis aqui o único refúgio para onde todos os crentes devem fugir quando o mundo os condena como perdidos e infelizes, ou seja, que devem ter por suficiente o fato de poderem contar com a aprovação divina; pois o que seria deles caso depositassem nos homens sua confiança? Desse fato devemos inferir que há grande diferença entre a fé e a mera opinião humana. A fé não depende da autoridade humana, tampouco é uma confiança hesitante e dúbia em Deus; ela tem de estar associada ao conhecimento, do contrário não será bastante forte contra os intermináveis assaltos que Satanás lhe faz. O homem que, como Paulo, possui tal conhecimento saberá por experiência própria que nossa fé é corretamente chamada "a vitória que vence o mundo" [1 Jo 5.4], e que Cristo tinha boas razões para dizer que "as portas do inferno não prevalecerão contra ela" [Mt 16.18]. Tal homem será capaz de repousar tranquilamente mesmo em meio às tormentas e tempestades deste mundo, visto que alimenta uma confiança inabalável de que Deus, que não pode mentir ou enganar, falou, e o que ele prometeu, certamente o cumprirá. Por outro lado, o homem que não tem essa verdade indelevelmente gravada em sua mente será sempre movido de um lado a outro como um caniço agitado pelo vento. Esta passagem merece nossa detida atenção, pois ela explica de uma forma muitíssimo excelente o poder da fé, quando demonstra que, mesmo em casos extremos, devemos glorificar a Deus por não duvidarmos que ele se manterá verdadeiro e fiel e por aceitarmos sua Palavra com a mesma certeza como se Deus mesmo surgisse do céu diante de nós. O homem carente de tal convicção nada entende. É preciso que tenhamos sempre em mente que Paulo não está filosofando no escuro, senão que, com a própria realidade diante dos olhos, está solenemente declarando o grande valor daquela confiante certeza da vida eterna.
“E estou convicto de que ele é capaz”. Ainda que a violência e a extensão dos perigos que nos cercam amiúde nos lancem em desespero ou, no mínimo, conturbem nossas mentes, temos de estar armados com a defesa de sabermos que há no poder de Deus proteção segura para nós. Portanto Deus, ao nos ordenar que sejamos confiantes, usa este argumento: “Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar" [Jo 10.29]. Com isso ele quer dizer que não corremos perigo algum, já que o Senhor que nos recebeu em sua proteção é infinitamente capaz de resistir a todos eles. Nem mesmo Satanás ousaria insinuar diretamente a ideia de que Deus é incapaz de cumprir o que prometeu, porquanto nossas mentes recuariam diante de tão nefanda blasfêmia; mas ao desviar nossos olhos e mentes para outras coisas, ele desvia de nós todo o senso do poder de Deus. Portanto; nossa mente deve estar completamente limpa, caso queiramos não só experimentar tal poder, mas também reter a experiência dele em meio às tentações de todo gênero.
Sempre que Paulo fala do poder de Deus, é preciso entender por essa ideia o seu poder real ou eficaz [energoumenen], como ele mesmo o qualifica em outro lugar [Col 1.29]. A fé sempre conecta o poder de Deus com sua Palavra, a qual não deve ser definida como algo remoto ou à distância, mas, sim, como algo interior do qual estamos na posse. É por isso que o apóstolo diz de Abraão em Romanos 4.20: "Não duvidou, por incredulidade, da promessa de Deus; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus."
“Guardar o meu depósito até àquele dia”. É bom observar a forma como ele descreve a vida eterna: o depósito que lhe fora confiado. Daqui aprendemos que a nossa salvação está nas mãos de Deus, precisamente como um depositário que conserva em sua guarda a propriedade que lhe fora confiada para a proteger. Se a nossa salvação dependesse de nós, ela seria constantemente exposta a todo tipo de risco; mas, ao ser confiada a um guardião tão capaz, ela fica fora de todo e qualquer perigo.
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