A Quem Deus Chama Ele Protege e Livra
Por João Calvino
Introdução ao Salmo 18
Todos nós sabemos por quais dificuldades e por quais obstáculos quase intransponíveis Davi assumiu o reino. Ainda ao tempo da morte de Saul ele era um fugitivo e, por assim dizer, fora-da-lei, e exaustivamente passou sua vida em temor e em meio a infindas ameaças e perigos de morte. Depois de Deus o ter, com sua própria mão, colocado no trono real, ele foi imediatamente acossado por tumultos e insurreições por parte de seus próprios súditos; e ante as facções hostis, sendo superiores a ele em poder, às vezes chegava ao ponto de sentir-se completamente sucumbido. Inimigos externos, em contrapartida, o tentaram severamente até à sua velhice. A tais calamidades jamais teria sobrepujado não fora ele sempre socorrido pelo poder de Deus. Havendo, pois, obtido muitas e notáveis vitórias, ele não canta, como os homens sem religião costumam fazer, um cântico em sua própria honra, mas exalta e magnifica a Deus como o Autor dessas vitórias, fazendo uso de um encadeamento de termos notáveis e apropriados, e num estilo de inexcedível grandeza e sublimidade. Este Salmo, pois, é o primeiro dentre aqueles em que Davi celebra, em suaves melodias, a imensurável graça que Deus sempre demonstrou para com ele, tanto ao introduzi-lo na posse do reino quanto a partir daí a sustentá-lo em sua possessão. Ele também mostra que seu reinado era uma imagem e tipo do reino de Cristo, com o fim de ensinar e assegurar aos fiéis que Cristo, a despeito de todo o mundo e de toda a resistência que este sempre lhe faz, ele seria, pelo tremendo e incompreensível poder do Pai, sempre vitorioso.
“Ao mestre de música, de Davi, servo de Jehovah, aquele que cantou a Jehovah as palavras deste cântico no dia em que Jehovah olibertou da mão de seus inimigos e da mão de Saul.”
Temos que determinar cuidadosamente o tempo específico em que este Salmo foi composto, como ele nos mostra que Davi, quando seus negócios foram conduzidos ao estado de paz e prosperidade, não se deixou intoxicar com extravagante regozijo como se dá com os homens sem religião que, quando obtêm o livramento de suas calamidades, descartam de suas mentes a lembrança dos benefícios divinos e se precipitam em grosseiros e degradantes prazeres, ou erigem sua torre e obscurecem a glória de Deus com sua soberba e vangloria desprovidas de conteúdo. Davi, segundo o relato da história sagrada (2 Sm 22), cantou este cântico ao Senhor quando já se achava desgastado pela idade, e quando, ao ser libertado de todas as suas tribulações, desfrutava de tranquilidade. A inscrição aqui concorda com esse relato e, à luz do que está declarado ali, concluímos que ela não foi imprópria e incorretamente prefixada para este Salmo. Davi põe em relevo o tempo quando ele era cantado, isto é, depois de Deus o ter libertado de todos os seus inimigos, para nos mostrar que ele estava, então, em perfeita e pacífica posse de seu reino, e que Deus o assistira não apenas uma vez, nem contra apenas um gênero de inimigos; visto que seus conflitos eram de tempo em tempo renovados, e o fim de uma guerra era o começo de outra; sim, muitos exércitos amiúde insurgiam-se contra ele a um só tempo. Desde a criação do mundo, dificilmente encontraremos nele outro indivíduo a quem Deus haja provado com tantas e com tão variadas aflições. Visto que Saul o havia perseguido com mais crueldade e com maior ferocidade e determinação do que todos os demais, seu nome, por essa conta, é aqui expressamente mencionado, ainda que, na cláusula precedente, o salmista haja falado, em termos gerais, de todos os seus inimigos. Saul não é expresso por último como se houvera sido um de seus últimos inimigos, pois sua morte se dera cerca de trinta anos antes desse tempo; e desde esse evento, Davi desbaratara muitos inimigos estrangeiros, e também reprimira a rebelião de seu próprio filho Absalão. Mas, persuadido de que era uma singular manifestação da graça de Deus em seu favor, e eminentemente digno de ser lembrado o fato de que ele havia por tantos anos escapado de incontáveis mortes, ou, melhor, que ao longo dos dias em que ele vivera sob o reinado de Saul, Deus havia operado, por assim dizer, tantos milagres em seu livramento, então ele com razão menciona e celebra em particular seu livramento das mãos desse implacável inimigo.
Ao denominar-se de servo de Deus, ele indubitavelmente pretendia testificar de sua vocação ao ofício de rei, como se quisesse dizer: Não usurpei o reino temerariamente, fazendo valer minha própria autoridade, mas simplesmente agi em obediência ao oráculo celestial. Aliás, em meio às tantas tormentas que iria enfrentar, era um apoio muitíssimo necessário estar bem certo em sua própria mente de nada ter empreendido além do que Deus havia designado; ou, melhor, isso foi para ele um céu pacífico e um refúgio seguro em meio a tantos tumultos e estranhas calamidades. Não há nada mais miserável do que uma pessoa, em adversidade, que entra em desespero por agir segundo o mero impulso de sua própria mente e não em obediência à vocação divina. Davi, pois, tinha sobejas razões para desejar que se fizesse notório que não foi movido de ambição que veio a tomar parte naqueles renhidos combates, os quais lhe foram tão dolorosos e difíceis de suportar, e que não havia intentado nada ilícito, nem usara de meios perversos, mas que sempre estivera em prontidão diante da vontade de Deus, a qual lhe serviu de luz a guiá-lo em sua vereda. Este é o ponto que nos é muitíssimo proveito sabermos, a fim de não esperarmos viver totalmente isentos de dificuldade, ao seguirmos o chamado divino; ao contrário, preparemo-nos para aquele doloroso e desagradável estado de luta em nossa carne. Portanto, a designação, servo, nesta passagem, bem como em muitas outras, se relaciona com seu ofício público; justamente como, quando os profetas e apóstolos se denominam de servos de Deus, temos uma referência ao seu caráter oficial. É como se tivesse dito: Não sou rei por minha própria iniciativa, senão que fui escolhido por Deus para ocupar essa posição por demais elevada. Ao mesmo tempo, devemos notar particularmente a humildade de Davi, o qual, embora distinguido por tantas vitórias e sendo o conquistador de tantas nações e possuidor de tão imensa dignidade e riquezas, não atribui a si nenhuma outra honra senão a de Servo de Deus! Como se pretendesse demonstrar que considerava mais dignificante ter realizado fielmente os deveres do ofício com o qual Deus o investira do que possuir todas as honras e excelências do mundo.
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