Se Alegre na Tribulação
Por João Calvino
“Em parte, fostes feitos espetáculo, tanto por vitupérios.” (Hb 10.33-35).
Assim vemos que aqueles a quem o escritor se dirige são aqueles cuja fé fora testada por tribulações não triviais, e todavia não cessa de exortá-los a maiores esforços.
Que ninguém se engane com ilusória gabolice, crendo que já alcançou o alvo, ou que não tem nenhuma necessidade de incentivos por parte de outrem. Ele diz que haviam se tornado espetáculo tanto por vitupérios como por tribulações, como se houvessem sido exibidos em espetáculo público. Daqui concluímos que as perseguições que suportaram eram especificamente notáveis. É preciso que se note cuidadosamente a última cláusula, onde o escritor diz que foram companheiros de outros crentes em suas perseguições. Porque, visto que a causa pela qual todos os crentes lutam é a causa de Cristo, e a qual é comum a todos eles, sempre que um deles sofre, todos os demais também pessoalmente sofrem com ele, e isso deve ser praticado universalmente, salvo se desejamos separar-nos do próprio Cristo.
“Aceitastes com alegria”... Não há dúvida de que, como eram pessoas sujeitas aos sentimentos humanos, a perda de seus bens certamente lhes trouxera sofrimento; sua tristeza, porém, foi de tal natureza que não os privou da alegria de que fala o apóstolo. A pobreza está inclusa entre as desvantagens da vida, e a privação de seus bens, considerada em si mesma, lhes trouxe angústias; mas quando olhavam um pouco mais alto, encontravam motivo de alegria, a qual suavizava qualquer dor que porventura sentissem. É conveniente que nossos sentimentos sejam, assim, conduzidos deste mundo pela antecipação do galardão celestial. Não digo outra coisa senão o que todos os crentes têm experimentado. Incontestavelmente, aceitamos com boa vontade tudo aquilo sobre o quê estamos persuadidos, contribuirá para nossa salvação, e os filhos de Deus, indubitavelmente, possuem este sentimento sobre os conflitos que suportam para a glória de Cristo. De modo que as emoções de nossa carne nunca são tão fortes a ponto de mergulhá-los em sofrimento, que também não sejam dominados pela alegria espiritual, ao elevar ao céu suas mentes.
Esse é o significado do que se segue: sabendo (diz ele) que vós mesmos tendes uma possessão melhor e permanente. Aceitavam com alegria o espólio de seus bens, não porque era-lhes agradável verem-se saqueados, mas porque suas mentes buscavam o galardão prometido, o que os fazia esquecer facilmente o sofrimento ocasionado pelo seu constante senso de desgraça. Aliás, sempre que a percepção dos bens celestiais é forte, o mundo, com todas as suas seduções, não é tão atrativo de propiciar que a pobreza e a vergonha mergulhem completamente nossas mentes em profundo sofrimento. Se desejamos, pois, suportar tudo por amor a Cristo, com paciência e equanimidade, habituemo-nos à frequente meditação sobre aquela felicidade, em comparação à qual todos os bens deste mundo não passam de refugo. Não devemos passar por alto as palavras sabendo que vós mesmos tendes. A não ser que alguém seja convencido de que a herança que Deus promete a seus filhos também lhe pertence, todo o seu conhecimento será sem vida.
“Não lanceis fora, pois, a vossa ousadia.” O autor mostra que o que especialmente nos injeta força para a perseverança é o apego à nossa fé; porque, quando deixamos esse fato escapar-nos, também nos privamos do galardão prometido. Disso se faz evidente que esse galardão é a base do santo e piedoso viver. Ao usar o termo galardão (= recompensa), o autor não está prejudicando em nada a promessa da salvação com base na graça. Os crentes têm consciência de que seu labor no Senhor não é em vão, de tal maneira que sua confiança é posta unicamente na misericórdia divina. Nesta conexão, tem-se dito amiúde que a ideia de galardão não é incompatível com a imputação gratuita da justiça.
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