O Sofrimento de Paulo

 
Por João Calvino
 
pelo qual estou sofrendo até algemas, como malfeitor; contudo, a palavra de Deus não está algemada.
Por esta razão, tudo suporto por causa dos eleitos, para que também eles obtenham a salvação que está em Cristo Jesus, com eterna glória. Fiel é esta palavra: Se já morremos com ele, também viveremos com ele;” (II Tim 2.9-11)
 
“Por isso sofro dificuldades”. Aqui, ele antecipa uma possível objeção, visto que aos olhos dos ignorantes sua prisão denegria a credibilidade de seu evangelho. Ele reconhece que, diante de todas as aparências externas, outra coisa não é senão um criminoso, mas acrescenta que isso não impedia o evangelho de continuar sua livre trajetória. Ao contrário, o que ele sofre é para o bem-estar dos eleitos, porquanto seu propósito era confirmá-los. Tal é a inabalável coragem dos mártires de Cristo, quando se sentem tão enobrecidos pelo conhecimento da boa causa a que servem, que são capazes de suplantar não só dores e torturas corporais, mas até mesmo todo e qualquer gênero de desgraça. Além do mais, todos os piedosos devem tomar alento ao verem os ministros do evangelho sendo assaltados e insultados pelos adversários, de modo que nem por isso reverenciem menos o seu ensinamento; ao contrário, dêem glória a Deus ao verem como, pelo divino poder, o evangelho despedaça todos os obstáculos que o mundo põe em seu curso.
 
Se não fôssemos excessivamente devotados à carne, tal fato, por si só, seria suficiente para consolar-nos em meio às perseguições, ou seja, o conhecimento de que, ainda quando somos oprimidos pela crueldade dos ímpios, não obstante o evangelho se estende e se difunde mais amplamente. Por mais que tentem, estão mui longe de obscurecer ou de extinguir a luz do evangelho; o máximo que podem é fazê-la brilhar ainda mais claramente. Portanto, suportemos com alegria; ou, ao menos, com uma mente tranquila; não importa se o nosso corpo e o nosso bom nome estejam encarcerados, contanto que a verdade de Deus se irrompa e seja difundida livremente por todo o mundo.
 
“Portanto, suporto todas as coisas”. Ele mostra, à luz de seus resultados, que sua prisão, longe de ser motivo de reprovação, é na verdade muitíssimo proveitosa para os eleitos. Ao dizer que Timóteo devia suportar todas as coisas por causa dos eleitos, com isso ele demonstra que se preocupava mais com a edificação da Igreja do que com seu próprio bem-estar. Pois está pronto não só a morrer, mas ainda a ser tido no número dos criminosos, se porventura tal coisa promovesse o bem-estar da Igreja. Nesta passagem, o ensino é o mesmo que em Colossenses 1.24, onde ele diz que "cumpro na minha carne o que resta das aflições de Cristo, por amor do seu corpo, que é a Igreja". Os papistas interpretam audaciosamente este texto, afirmando que a morte de Paulo foi uma satisfação por nossos pecados; o próprio texto, porém, refuta completamente tal ideia. Como se Paulo reivindicasse mais para sua morte do que para a confirmação dos piedosos na fé, pois ali imediatamente se deduz, à guisa de explicação, que a salvação dos crentes se acha fundada exclusivamente em Cristo. Uma abordagem mais completa de sua intenção se encontra na passagem que acabo de citar.
 
“Com eterna glória”. Eis o propósito da salvação que obtemos em Cristo. Pois o alvo de nossa salvação consiste em vivermos para Deus, e isso começa com nossa regeneração e se completa com nossa total libertação das misérias desta vida mortal, quando Deus nos tomar e nos reunir em seu reino. A esta salvação acrescenta-se a participação na glória celestial, glória esta de caráter divinal; e assim, para magnificar a graça de Cristo, ele chama nossa salvação de glória eterna.
 
“Fiel é a palavra”. Ele usa esta frase como prefácio ao que vem a seguir, porquanto nada há mais estranho à sabedoria da carne do que crer que devemos morrer a fim de vivermos, e que a morte é o pórtico de entrada para a vida. Deduzimos de outras passagens que era o costume de Paulo usar este prefácio antes de algo especialmente importante ou difícil de se crer. O significado é que a única forma de participarmos da vida e glória de Cristo é antes participando de sua morte e humilhação; como diz em Romanos 8.29, todos os eleitos foram "predestinados para serem conformados à imagem de seu Filho". Isso foi escrito tanto para exortar quanto para consolar os crentes. Quem poderia fracassar ao ser estimulado por esta exortação de que não devemos nos desesperar causa de nossas aflições, visto que teremos um feliz livramento delas? O mesmo pensamento abate e ameniza todas as amarguras geradas pela cruz, visto que nem dores, nem tormentos, nem reprovações, nem morte nos podem apavorar, uma vez que as compartilhamos com Cristo; e, especialmente, porque todas essas coisas são precursoras de nosso triunfo. Portanto, através de seu exemplo pessoal, Paulo injeta ânimo em todos os crentes para que, com o coração iluminado, pudessem suportar as aflições nas quais já têm uma prelibação da glória futura. Mas, se porventura isso for demais para crermos movidos por nossa própria iniciativa, e se a cruz nos subjugar e toldar nossa visão, nos impedindo de discernir a Cristo, lembremo-nos de empunhar este escudo: "Fiel é a palavra." Onde Cristo se faz presente, também presente está a vida e a bem-aventurança. Devemos manter-nos firmes a esta comunhão que temos com Cristo, para que não morramos em nós mesmos, mas com ele, para que sejamos companheiros de sua glória. Morte, aqui, significa a mortificação externa de que fala em 2 Coríntios 4.10.

 
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João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 11/08/2014
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