Na Presença de Um Deus Santo
Por João Calvino
“O Jehovah, quem habitará em teu tabernáculo? Quem descansará no monte de tua santidade? Aquele que anda em integridade e pratica a justiça, e que em seu coração fala a verdade.” (Salmo 15.1,2)
1. “Ó Jehovah, quem habitará em teu tabernáculo?” Como nada no mundo é mais comum do que apropriar-se falsamente do nome de Deus, ou pretender ser seu povo, e visto que a maioria dos homens se permite fazer isso sem qualquer preocupação pelo perigo que os envolve, Davi, sem deixar de falar aos homens, dirige-se a Deus, o que ele considera ser o melhor rumo a tomar; e insinua que, se os homens lançam mão do título, povo de Deus, sem o ser de fato e de verdade, nada lucram enganando a si próprios, pois Deus continua sempre imutável e, visto ser ele fiel a si próprio, portanto exige que sejamos também fiéis a ele como nossa resposta. É verdade que ele adotou a Abraão graciosamente, mas, ao mesmo tempo, lhe estipulou que sua vida seria santa e íntegra; e essa é a regra geral do pacto que Deus, desde o princípio, fez com sua Igreja. Eis a suma: os hipócritas, que ocupam um espaço no templo de Deus, debalde pretendem ser seu povo, pois ele não reconhece a ninguém como tal, senão aqueles que seguem após a justiça e a retidão ao longo de todo o curso de sua vida. Davi viu o templo apinhado de uma grande multidão de homens que haviam feito todos a profissão de uma mesma religião, apresentando-se diante de Deus através de um cerimonial externo; e assim, assumindo a pessoa de alguém que se extasia ante um espetáculo, ele dirige seu discurso a Deus que, numa confusão tal e numa miscelânea de personagens, podia facilmente distinguir seu próprio povo por entre os estranhos.
Há uma tríplice aplicação desta doutrina. Em primeiro lugar, se realmente desejamos ser considerados como parte do rol dos filhos de Deus, o Espírito Santo nos ensina que devemos provar o que de fato somos através de uma vida santa e íntegra; pois não basta servir a Deus através de cerimônias externas, a menos que também vivamos com retidão e sem fazer dano a nosso próximo. Em segundo lugar, já que tão amiúde vemos a Igreja de Deus desfigurar-se com variadas impurezas, para evitar que tropecemos no que aparenta ser por demais ofensivo, faz-se uma distinção entre aqueles que são cidadãos permanentes da Igreja e os estranhos que penetram em seu seio por algum tempo.
Essa é indubitavelmente uma advertência em extremo necessária, para que, quando o templo de Deus vier a ser maculado por muitas impurezas, não nos deixemos confranger demasiadamente por tais desgostos e vexações, a ponto de virarmos-lhe as costas. Por impurezas entendo os vícios de uma vida corrompida e poluída. Contanto que a religião continue pura quanto à doutrina e ao culto, não devemos deixar-nos abalar em demasia ante os erros e pecados que os homens cometem, como se com isso a unidade da Igreja fosse dilacerada. Entretanto, a experiência de todas as épocas nos ensina quão perigosa esta tentação se torna quando vemos a Igreja de Deus, que deve prosseguir isenta de toda e qualquer mancha poluente e resplandecer em incorruptível pureza, nutrindo em seu seio um grande número de hipócritas ímpios ou pessoas perversas. Por causa disso é que os cataristas, novacianos e donatistas, em seus primórdios, se aproveitaram para separar-se da comunhão dos santos. Os anabatistas, atualmente, renovaram o mesmo cisma, porque não lhes parecia que uma igreja com tais vícios pudesse ser a verdadeira Igreja. Mas Cristo, em Mateus 25.32, com justa razão alega ser seu, com toda propriedade, o ofício peculiar de separar as ovelhas dos cabritos; e por isso nos admoesta que devemos suportar os maus, e que não está em nosso poder corrigi-los, até que as coisas se tornem amadurecidas e chegue o tempo próprio de purificar a Igreja. Ao mesmo tempo, os fiéis são aqui intimados, cada um em sua própria esfera, a empregar todos os seus esforços para que a Igreja de Deus seja purificada das corrupções que nela ainda persistem.
E essa é a terceira aplicação que devemos fazer desta doutrina. O sagrado celeiro de Deus não estará perfeitamente purificado antes do último dia, quando Cristo, em sua vinda, lançará fora a palha. Mas ele já começou a fazer isso através da doutrina de seu evangelho, que neste relato ele chama crivo de joeirar. Não devemos, pois, de forma alguma ser indiferentes acerca desse assunto; ao contrário, devemos antes mostrar-nos absolutamente sérios, para que todos nós que professamos ser cristãos possamos levar uma vida santa e imaculada. Acima de tudo, porém, o que Deus aqui declara com respeito a toda injustiça deve ficar indelevelmente impresso em nossa memória; ou seja, que ele os proíbe de entrar em seu santuário, e condena sua ímpia presunção em irreverentemente intrometer-se na sociedade dos santos. Davi faz menção do tabernáculo, porquanto o templo não havia ainda sido construído. O significado desse discurso, para dizê-lo em poucas palavras, é o seguinte: somente aqueles que têm acesso a Deus, e que vivem uma vida santa, é que são seus genuínos servos.
2. “Aquele que anda em integridade”. É preciso observar aqui que há nas palavras um contraste implícito entre a vanglória daqueles que são o povo de Deus apenas nominalmente, ou que apenas fazem vã profissão de uma fé fictícia, a qual consiste de observâncias externas, e aquela indubitável e genuína comprovação da verdadeira piedade que Deus recomenda. Mas, alguém poderia perguntar: visto que o serviço de Deus tem precedência em relação aos deveres da caridade para com nosso próximo, por que não se faz menção aqui da fé e da oração? Pois com certeza essas são as marcas pelas quais os genuínos filhos de Deus devem ser distinguidos dos hipócritas. A resposta é simples. Davi não pretendia excluir a fé e a oração, bem como outros sacrifícios espirituais; visto, porém, que os hipócritas, a fim de promoverem seus interesses pessoais, não se poupam em sua atenção posta na multiplicidade de observâncias religiosas externas, enquanto sua impiedade, não obstante, se manifesta externamente no viver, porquanto se enchem de orgulho, crueldade, violência e se entregam à fraude e extorsão - o salmista, com o propósito de pôr a descoberto e trazer à luz todos os que possuem tal caráter, traça as marcas e evidências da genuína e sincera fé à luz da segunda tábua da lei.
Segundo o cuidado que cada pessoa deve tomar na prática da justiça e equidade em relação a seu próximo, assim ela mostra que realmente possui o temor de Deus. Davi, pois, não deve aqui ser entendido como a repousar satisfeito com a política ou com a justiça social, como se bastasse devolver aos nossos semelhantes o que lhes pertence, enquanto que podemos licitamente defraudar a Deus de seu direito. Mas ele descreve os servos aprovados de Deus como que distinguidos e conhecidos pelos frutos de justiça que produzem. Em primeiro lugar, ele requer sinceridade; noutros termos, que os homens se conduzam em todos os seus afazeres com singeleza de coração e destituídos de astúcia ou artifícios pecaminosos. Em segundo lugar, ele requer retidão; equivale dizer que devem esforçar-se por fazer o bem a seu próximo, a ninguém prejudicar e abster-se de todo e qualquer mal. Em terceiro lugar, ele requer veracidade em sua conversação, de modo a não falar qualquer falsidade ou duplicidade. Falar em seu coração é uma forte expressão figurativa, mas ela expressa agudamente a intenção de Davi mais do que se ele dissesse de seu coração. Ela denota a concordância e harmonia entre o coração e a língua, visto que a linguagem é, por assim dizer, uma vivida representação da afeição oculta ou sentimento interior.
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