E sua graça... não foi em vão
Por João Calvino
“Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo.” (I Cor 15.10)
Como vemos aqui em 1 Coríntios 15.10, aqueles que se põem deliberadamente em oposição à graça de Deus, temendo que venhamos fazê-la totalmente responsável por tudo o que de bom fazemos, torcem estas palavras para que se ajustem ao seu ponto de vista, como se Paulo estivesse vangloriando-se de que, por seus próprios esforços, cuidasse de impedir a Deus de lhe conferir sua graça para nenhum propósito. Consequentemente, chegaram à conclusão de que a graça é certamente oferecida por Deus, mas o uso correto dela é algo que o homem tem em seu próprio poder, e a responsabilidade de obtê-la, mantendo-a latente, é sua. Nego, porém, que estas palavras de Paulo deem qualquer apoio a esse ponto de vista equivocado, porque neste versículo ele não está reivindicando nada para si mesmo, como se tivesse feito, independentemente de Deus, algo louvável.
Então, o que ele quer dizer? A fim de não dar a impressão de fazer fútil ostentação, com todo o vocabulário, porém carente de realidade, ele declara que está afirmando aquilo que está à vista para quem quiser ver. Finalmente, concedido que estas palavras mostram que Paulo não fazia mau uso da graça de Deus, e não a tornou inútil por sua própria negligência, todavia sou de opinião que não temos qualquer justificativa, por essa conta, para dividir entre ele e Deus o louvor que deve ser atribuído exclusivamente a Deus, à vista do fato de que Deus nos outorga não só a capacidade de agir bem, mas também a vontade de agir bem e o resultado de nossos esforços.
“Trabalhei muito mais”. Alguns acreditam que esta expressão se direciona aos fanfarrões que, ao denegrirem a pessoa de Paulo, estavam promovendo a si próprios e a seus futuros interesses pessoais; porque, segundo este ponto de vista, não seria digno de Paulo querer entrar em competição com os apóstolos. Mas quando ele se compara aos apóstolos, ele o faz motivado por pessoas ímpias que tinham o hábito de confrontá-lo com eles a fim de rebaixarem sua reputação, segundo vemos na epístola aos Gálatas (1.11). Assim, é bem provável que ele esteja falando dos apóstolos, quando avalia seus próprios esforços acima dos esforços deles. E certamente é verdade que ele se sobressaía nas demais áreas, não só em suportar muitas dificuldades, em passar por muitas provas e experiências, em abster-se de muitas coisas para cujo uso ele tinha toda a liberdade, mas porque o Senhor estava coroando seus esforços com uma maior medida de sucesso. Pois considero “labor” como que significando os resultados que deviam ser vistos em seu trabalho.
“Não eu, mas a graça de Deus que era comigo”. Ao omitir o relativo (que), a Vulgata deu aos que não conhecem o grego uma oportunidade de cometer equívoco. Porquanto ela traz: "Não eu, mas a graça de Deus comigo", o que leva à conclusão que só a metade do crédito é atribuída a Deus, enquanto que a outra metade é atribuída ao homem. Portanto, o seu raciocínio é que Paulo não agia por conta própria, porquanto nada poderia fazer sem a graça cooperante, enquanto que, ao mesmo tempo, seu próprio livre-arbítrio e seus próprios esforços tinham sua própria participação na ação. Porém, suas palavras vibram uma nota completamente diferente, pois, havendo dito que algo lhe era aplicável, ele corrige isto e o transfere inteiramente para Deus; inteiramente, insisto, e não apenas uma parte; pois afirma que, seja o que for que pareça ter sido feito por ele, na verdade era totalmente obra da graça. Este é deveras um versículo notável, não só em reduzir a pó o orgulho humano, mas também em fazer evidente como a graça divina age em nós. Porque, como se tivesse cometido um equívoco em fazer dele mesmo a fonte de algo bom, Paulo corrige o que havia dito, e declara que a graça de Deus é a causa eficiente de tudo. Não devemos imaginar que Paulo está meramente simulando humildade aqui.
Ele está falando de seu coração, como costuma fazer, e porque sabe que esta é a plena verdade. Devemos, pois, aprender que o único bem que temos é aquele que o Senhor nos concedeu graciosamente; que o único bem que praticamos é aquele que ele produz em nós; que nada fazemos por nós mesmos, senão que agimos somente quando somos influenciados; em outras palavras, quando estamos sob a direção e influência do Espírito Santo.
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