Santa Vocação

 
Por João Calvino
 
“que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos,” (2 Timóteo 1.9)
 
“Que nos chamou com santa vocação”. Ele faz de nossa vocação o selo infalível de nossa salvação. Pois como a salvação foi consumada na morte de Cristo, assim Deus nos faz partícipes dela através de Cristo. Para magnificar essa vocação ainda mais, ele a qualifica de santa. Tal fato deve ser cuidadosamente observado, pois assim como temos de buscar a salvação exclusivamente em Cristo, ele também teria morrido em vão e a troco de nada caso não nos chamasse para participarmos desta graça. Portanto, mesmo depois de haver, com sua morte, nos granjeado a salvação, uma segunda bênção resta para ser outorgada, a saber: que ele nos uniria em seu Corpo e nos comunicaria seus benefícios a fim de os desfrutarmos.
 
“Não segundo nossas obras”. Ele agora chama a atenção para a fonte, quer de nossa vocação, quer de nossa salvação total. Não possuímos obras que sejam capazes de tomar a iniciativa em lugar de Deus, de modo que a nossa salvação depende absolutamente de seu gracioso propósito e eleição. Em ambos os termos - “propósito” e “graça” - há uma hipálage*, de modo que o segundo termo é considerado um adjetivo - "segundo o seu gracioso propósito". Ainda que Paulo geralmente use o termo “propósito” no sentido de "o decreto secreto de Deus", o qual depende exclusivamente dele, o apóstolo, aqui, decide adicionar “graça” com o fim de tornar sua tese ainda mais explícita e poder excluir completamente toda e qualquer referência às obras. A antítese, neste versículo, por si só é suficiente para deixar completamente claro que não há espaço algum para as obras onde reina a graça de Deus, especialmente quando somos lembrados da eleição divina, através da qual ele antecipou eleger-nos antes que viéssemos à existência. O mesmo tema é discutido mais amplamente em conexão com Efésios 1, e no momento toco nele mui de leve, já que o discuto mais amplamente ali.
 
A qual nos foi dada. Partindo da ordem do tempo, ele conclui que a salvação nos foi outorgada pela graça soberana, já que nada fizemos de antemão para merecê-la. Pois se Deus nos elegeu antes da fundação do mundo, então ele não poderia ter levado em conta obra alguma de nossa parte, porquanto nenhuma ainda existia e nós mesmos ainda não existíamos. A evasão sofisticada, de que Deus fora influenciado pelas obras que previra, não demanda uma longa resposta. Que espécie de obras teriam sido essas, se Deus nos havia rejeitado, visto que a eleição propriamente dita é a fonte e origem de todas as coisas boas? Esse “dar graças” de que ele faz menção, outra coisa não é senão a predestinação, pela qual fomos adotados como filhos de Deus. Gostaria que meus leitores se lembrassem disso, pois amiúde se diz que Deus nos “dá” sua graça somente quando ela começa a operar eficazmente em nós. Aqui, porém, Paulo está tratando daquilo que Deus determinou consigo mesmo desde o princípio; portanto, o que ele deu às pessoas que nem ainda existiam é algo que fica completamente fora de qualquer consideração meritória, e o conservou em seus tesouros até chegar o tempo em que pudesse trazê-lo a lume pelo resultado de que Deus nada determina em vão.
 
Tanto aqui quanto em Tito 1, o apóstolo chama a interminável série de anos, desde a fundação do mundo (Tt 1.2), de tempos eternos. A engenhosa discussão sobre este assunto, que Agostinho suscita em muitas passagens, é estranha ao pensamento de Paulo; o que este quer dizer é simplesmente isto: "antes que os tempos iniciassem sua trajetória, desde todas as eras passadas." Além do mais, é digno de nota o fato de ele colocar Cristo como o único fundamento da salvação, porque fora dele não há nem adoção nem salvação para ninguém, como diz ele em Efésios 1.
 
* Figura pela se atribuí a certas palavras, geralmente através de um adjetivo, qualidades que pertencem a outras, com as quais se relacionam, normalmente na mesma frase.
 
 
Nota do Pr Silvio Dutra: É abordado aqui o difícil assunto da predestinação. Difícil em sua própria natureza porque não foi dado a conhecer por Deus o modo pelo qual elegeu pessoas para a salvação. É-nos informado nas Escrituras que foi por pura graça segundo o conselho da Sua própria vontade soberana, mas não se informa todos os segredos ocultos no coração divino ao ter realizado a citada eleição.
De fato não foi por qualquer mérito dos eleitos ou por qualquer coisa boa que houvesse em sua própria natureza – porque a única coisa boa no assunto da salvação é a natureza santa, celestial e divina que encontramos somente em Jesus Cristo -, porque todas as pessoas chegam ao mundo com uma natureza que é inimiga de Deus e que resiste à Sua pessoa e vontade. E somente o próprio Deus, pelo Seu poder, é capaz de quebrar esta resistência e inimizade.
Se não exercer graça e misericórdia para conosco, pecadores que somos, de modo nenhum poderíamos nos achegar a Ele voluntariamente, como filhos obedientes e amáveis. 
 
“Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer;” (João 6.44)
 
“Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida.” (João 5.40)
 
Destas palavras de nosso Senhor Jesus Cristo se conclui que de nós mesmos, não queremos e não podemos ir a Ele, caso isto não seja realizado por Deus Pai, tanto em gerar em nós o desejo, quanto a nos capacitar à referida aproximação.
 
Por este método da salvação, Deus e não o homem é glorificado porque demonstra que se não fosse por Sua graça e misericórdia todos estariam condenados à perdição eterna.
 
 
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Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 08/08/2014
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