Rejeição
 
©Sarah D.A. Lynch
 
 
 
 Às vezes o amor é errado. Parece terrível dizer isto, mas é a mais pura verdade. Às vezes o amor é errado.
 
Não estou falando aqui de amor entre pais e filhos, do amor ao seu cãozinho, do amor entre amigos. Estou falando do amor que se mistura ao sexo numa química inexplicável e devastadora, que varre tudo em seu caminho e torna inútil a razão. Um fogo consumidor. Um tsunami. Um terremoto. E, depois que se extingue, deixa atrás de si os detritos e o vazio.
 
Chamam isso de paixão. E por que, perguntamo-nos, o Criador fez algo assim? "Para nos ensinar uma lição” parece ser uma resposta muito capenga. Algumas religiões acham que essa paixão vem direto do “Coisa Ruim”, e é o suprassumo do pecado. Contudo, como diz a frase, quem nunca sentiu algo assim, que atire a primeira pedra. Quer dizer, a resposta não é bem essa.
 
Ora, quando o objeto da paixão corresponde com a mesma intensidade, ou pelo menos com um pouco, o “entre aspas” é paraíso. Quando não corresponde, o que é de longe o mais comum, o resultado pode ser mortal. Depressão. Vazio. Extrema tristeza. Suicídio.
 
O pior resultado de todos, contudo, é a vergonha. A pessoa apaixonada raramente se conforma com a rejeição, e se sente diminuída. Incapaz. E, na maioria das vezes, começa a fazer asneiras, o que leva depois ao arrependimento e a um mergulho ainda mais fundo em sentimentos negativos. A vingança, a dissipação, o ódio. Outra vez, a maioria de nós já passou por algo assim, então não seja idiota, criticando seu próximo.
 
Nos últimos tempos, tenho recebido tantas confidências de amores não correspondidos, que comecei seriamente a duvidar que existam os correspondidos. O pior é que aqueles que o são terminam logo, e a quantidade de divórcios ou meras separações atinge níveis estratosféricos.
 
E como lidar com algo assim? A maioria dos conselheiros  de Internet ou de mesa de bar costuma dizer ao pobre sofredor que espere o passar do tempo. Afinal, nada dura para sempre.
 
Mas o problema é o que fazer no entremeio. A indústria farmacêutica enriquece com as paixões mal resolvidas. Os traficantes de drogas também. As prateleiras de bebidas dos supermercados. Os consultórios de análise. Mas nada, absolutamente nada, parece resolver.
 
Alguns aconselham a superar essa lenta passagem do tempo encontrando uma nova paixão. Contudo, o problema começa com o fato de que encontrar um novo amor não é tão fácil assim. Na maioria das vezes, a pessoa termina em promiscuidade, ou em uma desilusão ainda maior.
 
Também eu conheci o peso da desilusão amorosa, com meu primeiro namoradinho. Cinco anos mais tarde, precisei mandá-lo embora - e fechei o coração. Tive namorados, companheiros, amigos coloridos - mas nunca mais me apaixonei. Eu já escrevia na época, e coloquei em um texto: "Nunca deixe que ninguém tenha tanto poder assim sobre você."

A partir daquele momento, entreguei-me ao que passou a ser minha única paixão: ir para Israel e me juntar à Hagannah, a IDF da época. Eu não contava com doença e com outros tropeções da vida. Quando estava mais longe do que nunca do meu objetivo, encontrei um homem que me virou totalmente a cabeça.

Ele não era bonito, mas tinha loucos cachos ruivos esvoaçantes, profundos olhos azuis como um lago ao sol, e longas, longas pernas. Era o líder de uma seita cristã nas Américas, e fiquei tão cega de amor que abandonei até minha própria essência para segui-lo.

Eu tinha 25 anos na época, e o amei por 33 longos anos. Mesmo quando desapareceu com nossos filhos. Mesmo quando casei com alguém mais, e usei esse alguém mais para destrui-lo, destruir sua seita e recuperar meus filhos das garras dela.

Eu destrui sem dó nem piedade tudo o que meu amado considerava mais sagrado. E observei de longe, enquanto ele lentamente envelhecia e perdia as forças, sozinho e perturbado.

Mas a vingança não matou o meu amor. Nem minhas parcas tentativas de perdão. Só fui me libertar  quando espargi suas cinzas nas águas revoltas de um córrego.

"Nunca deixe que ninguém tenha tanto poder assim sobre você". Eu deixara, e o amor e a vingança me mataram mais completamente do que a morte que o levara.

Muita coisa se passou durante e depois do dia em que me parei, atônica e confusa, às margens daquele córrego, cercada de meus filhos, com sua urna vazia nos braços e a certeza de minha total solidão, agora esvaziada até da vingança. Eu vencera, mas a vitória não me trouxera nenhuma alegria.

E foi aí que aprendi que a única maneira de sobreviver seria transcender a mim mesma, e subliminar meus sentimentos. 

E o que vem a ser essa subliminação? Subliminação é transformar seus sentimentos negativos em algo positivo. Eu derramei na minha escrita e nas minhas tintas todos os meus sentimentos de abandono, de raiva, de vingança. E funcionou.

Até que, depois de mais de uma década daquele dia em que espargi as cinzas do meu amado, fui me apaixonar outra vez, e tudo se repetiu. Mas isso é outra história, e não vem ao caso.

E por que estou contando tudo isso, e me despindo publicamente? Porque o despir-me de minhas máscaras talvez ajude alguém mais que está lá fora, debatendo-se contra seus sentimentos. Como os tantos amigos que me procuram em desespero.
 
Voltando ao assunto, essa subliminação, ou seja, essa transformação, vem a ser justamente o verdadeiro processo de toda criação artística. Talvez o artista seja a criatura mais privilegiada da face da Terra, porque ele parece poder lidar com suas emoções de uma maneira que parece ter sido negada aos demais. Ele pode colocar em cores, sons, formas e sentenças tudo o que o atormenta, transferindo para o objeto de sua criação seu próprio espírito.
 
Na verdade, porém, você não precisa ser um artista para subliminar seus sentimentos. Você pode escrever um diário. Pode desenhar, mesmo que seu desenho não seja lá essas coisas. Pode fazer uma escultura em madeira, barro, pedra. Pode bordar. Tricotar. Fazer tecelagem, crochê, ginástica rítmica. Seja o que for que você escolher, transmute seus impulsos autodestrutivos, sua tristeza, seu desespero, seu desejo de vingança, em arte.
 
E foi assim que descobri a resposta para aquela pergunta lá acima: Por que o Criador nos deu a paixão, essa poderosa força destrutiva? Ele nos deu algo assim para que, nós também, fôssemos criadores. A verdadeira transcendência vem da mais profunda destruição.
 
Podemos ver isso por toda a Natureza. O verde renascendo ainda mais verde depois de uma tormenta, de um fogo, de um terremoto. Os animais procriando com mais fertilidade depois de um extermínio.
 
E o ser humano? O ser humano tem o poder de criar a mais profunca beleza de seu mais profundo vazio. Trocar beleza por cinzas. Então, se você está se sentindo desesperado, solitário, vazio, dividido entre o autoaniquilamento e a vingança, pense nisso. 


Afinal, esta é a suprema superação de sua condição de mero ser criado. Você é co-autor do Universo.



 
Dalva Agne Lynch
Enviado por Dalva Agne Lynch em 30/08/2016
Reeditado em 17/10/2017
Código do texto: T5744247
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