Um músico menos capenga

Quando eu tinha uns sete anos, um vizinho que trabalhava com reciclagem me deu um teclado que ele havia achado no lixo. Era um tecladinho de quatro oitavas, branquinho, e quebrado. Mas, o que não falta para uma criança de sete anos é imaginação, então, logo eu era o maior músico da minha rua. Tocava pressionado as teclas e fazendo o som com a boca. Papai vendo isso, rapidamente se entusiasmou e comprou um teclado para mim, era de segunda mão, e tinha a vantagem de não ser quebrado. A vantagem ou um sério problema, já que tendo som próprio, ao apertar aleatoriamente as teclas eu deixei de ser o menino prodígio para a criança pertubadora. Não deu outra, papai teve que contratar um professor para ver se eu não maltratava nem o instrumento e nem os vizinhos.

 

Meu primeiro mestre foi o irmão Gilson, hoje um grande amigo. Deu- me umas cinco lições, só a parte introdutória. Depois foi a professora Alessandra. Ela havia estudado numa antiga escola de música e sabia ler partitura. Com ela fiquei uns 8 anos. Até virei seu professor substituto, com direito a salário e tudo. Não era dificil ser professor, os alunos não eram tão exigentes, geralmente se satisfaziam com Asa Branca, Luar do Sertão e Love Store. Um ou outro exigia uma música mais complexa, nesses casos, a gente estudava a partitura e estava tudo certo.

 

Um dos meus alunos era a criança Jotan. Ele devia ter uns 10 anos e eu uns 14, ou seja, outra criança. Por vezes, após alguns exercícios ele me dizia que não estava afim de fazer a aula, então a gente ia para casa dele jogar vídeo game, jogar bola ou andar de bicicleta pelas ruas do bairro.

 

Como já disse, aprendi a tocar teclado por partitura, para uma orquestra era ótimo , mas para tocar numa banda, ou mesmo pegar uma música solo, nem sempre a partitura está ao alcance da gente. Nesse caso, ou você tem a habilidade de tocar de ouvido ou fica esperando a hora de alguém tocar uma música que você tenha decorado a partitura. Nessa segunda hipótese o chato e que você ver os outros se divertindo enquanto você fica só acompanhando com a cabeça ou se a sua dignidade for bastante baixa, zera o som do instrumento e mete o loco fingindo que está tocando. Pasmem, isso é bastante comum.

 

Deixei a muleta das partituras exatamente num desses dias em que fingia que tocava. Um músico que eu nunca tinha visto na minha vida percebeu o meu blefe, perguntou onde eu morava e disse que passaria lá em casa para me dá umas dicas. E não é que ele foi mesmo.

 

Ele pediu uma folha de papel e um lápis e escreveu a escala de Dó maior natural e de Lá menor natural. Mostrou no teclado um exemplo de música na escala maior e outro na menor. A maior foi o hino 15 da Harpa Cristã. E a menor foi a música Eu navegarei no oceano do Espírito. E só bastou isso. Foi embora e nunca mais o vi.

 

Naquela mesma tarde eu soube que ele brigou com o baterista da nossa igreja. Desceu-lhe uma capoeira que o cabra quase se acaba. E depois disso sumiu do mapa. Nunca mais tive sequer notícias do meu inusitado professor.

 

Ele não me tirou do zero, claro. Já tinha nas costas quase 10 anos de partitura e algumas aulas de violão com o irmão Nenê. Mas sem as dicas das escalas que ele me deu, acho que ainda hoje eu só tocaria as músicas que eu decorasse previamente e não de forma espontânea como tento faço hoje, não tão bem, "mas dou pro gasto", pelo menos já não é em toda música que baixo o volume e finjo que estou arrasando.

George Barbalho
Enviado por George Barbalho em 11/08/2024
Reeditado em 12/08/2024
Código do texto: T8126521
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