Soleil - Parte 3 - Dores

- Meu marido, por favor, o ajudem!

A mulher estava desesperada, apressando os médicos daquele lugar para conseguir atendimento imediato. O homem foi levado de maca, com a ruiva chorando ainda atrás, visivelmente abalada, nem ao menos conseguiu explicar o que aconteceu para aquele sujeito, sangrando aos baldes aparecesse ali.

Depois de um tempo ela se acalmou. Mesmo assim, ninguém queria falar nada a respeito, poderia voltar toda aquela angústia. Enfim, continuaram os exames em cima do paciente. Até que ele acordou, sem saber como fora parar ali. E só nesse momento Anne Flamel pôde ter contato pessoal com seu “marido”.

- Você disse que éramos casados?

- Precisava de um pretexto para estar num hospital com você, conseguir alguma resposta do que aconteceu.

Enzo ainda na cama, olhava para a janela. Devia ser mais ou menos uma ou duas da tarde. Lara estava visivelmente abatida por não ter dormido muito bem.

- Qual é o meu nome aqui?

- Você é Felipe Lamarck. E eu, Amanda.

Uma outra pontada. Essa mais fraca, mas algo estranho estava acontecendo. Ele estava começando a se recordar de tudo das formas mais dolorosas possíveis, com luzes e flashes em frente aos seus olhos, mas sempre eram muito confusos e sem nexo. Ele conhecia uma Amanda e o marcou muito, não havia outra explicação. Este era um nome muito comum, não teria esse efeito se não tivesse nenhuma importância.

- O que foi? Está doendo de novo?

- Foi só um momento. Tá tudo bem agora.

Lara, naquele momento, Amanda Lamarck, se sentou na cama onde estavam. Levantou o rosto de Enzo, naquele momento, Felipe Lamarck, e com a outra mão tocou sua face.

- Você está quente.

Quente eram os olhos que o encaravam. Aquele verde cintilante o deixava até desorientado. Ela parecia ainda mais linda quando olhava daquele jeito.

- Com tanta preocupação, é fácil fazer acreditar que neste momento, somos casados de verdade.

Ela enrubesceu. Tirou as mãos de Felipe e olhou para o outro lado. E a porta se abre. Doutor Paulo, um oriental de meia idade, com um largo sorriso.

- Desculpe interromper, o resultado dos exames acabou de sair, vou precisar verifica-lo na minha sala. Senhor, posso pegar emprestado sua esposa uns instantes?

Erick havia chegado em sua sala. A manhã inteira havia passado na delegacia, depondo sobre o que aconteceu no dia anterior, sobre o sequestro na empresa na qual administrava. A polícia ainda não havia chegado a uma conclusão imediata, já que não havia sentido a invasão de uma quadrilha armada em um prédio administrativo, na qual nem possuía informação burocrática, pelo menos não naquele local.

Mas o que realmente espantou foram as ligações perdidas de Toni, desde cedo, e que só agora conseguiu visualizar. Toni era seu irmão mais velho. Ele não gostava, nem levava jeito para os negócios, gostava mesmo era de proteger as coisas que gostava, de cuidar das pessoas. Por isso entrou para a polícia federal, embora tivesse por direito uma parte generosa daquela multinacional que carregava o sobrenome da família. O pai dos dois havia vindo para o Brasil desde antes deles nascerem e aqui ficou, embora mantivesse contato com suas raízes na Europa e na matriz, localizada na Holanda.

Havia muito tempo em que os irmãos não se falavam. O último encontro foi muito estranho. Erick ajoelhado e atado ao lado da mulher que pretendia impressionar, totalmente impotente diante da situação e o velho Toni desatando seus nós. E de vários outros no saguão.

Pouco tempo depois de meditar sobre seu passado com o irmão, o celular volta a tocar. Erick o atende, ainda um pouco sem saber como se sentia em relação ao dia anterior.

- Erick, preciso de uma informação oficial sua.

Informação oficial?

- Pois não?

- Você estava com uma mulher ontem, durante o sequestro. Ela desapareceu logo em seguida. Se eu não me engano, o nome que estava escrito em seu crachá é Lara Milleni.

- O que você quer saber sobre ela?

- Tudo que você sabe. Ela é suspeita de invadir um prédio público, manipular as imagens de segurança e provavelmente destruir um corpo de um colega de trabalho.

Erick engoliu em seco. Então começou a contar.

- Eu a conheci no aeroporto. Ela estava vindo de algum lugar de fora, me disse que ficou muito tempo estudando no exterior e agora estava de volta. Estava lendo um livro, nada muito importante, fui apenas conversar com ela. Mas parecia que ela era do Brasil, mas não conhecia bem o Rio e eu me ofereci a leva-la pra algum lugar. Eu dei meu cartão a ela e anteontem ela me ligou, pedi para que ela viesse até o escritório perto da hora do almoço e quando eu desci, aqueles homens armados invadiram o prédio. Nada que realmente possa ser útil nesse caso.

- Você não perde a chance, não é Erick?

Um riso por trás do telefone.

- Algo a mais que eu deva saber? Hotel onde ela estava?

- Ah, sim. Eu me lembro...

Enzo consegue dormir por alguns instantes. Mas não era nada bom o fato de sonhar diante uma situação como aquela.

Ele via um outro cara. Ele parecia ter uns dezesseis, dezessete anos. Era de mesma altura, as formas do rosto eram parecidas, entretanto, era como se ele fosse uma parte melhorada dele mesmo. Os olhos estavam mais claros, o cabelo, mais escuro, os músculos mais definidos e com um leve bronzeado mediterrâneo. Era outra versão dele mesmo.

Ele o estava encarando.

Enzo levantou a mão esquerda e tentou tocá-lo, sentia que precisava fazer isso, ele parecia real demais. Ele já tinha visto aquilo antes. E a duplicada repetiu o mesmo gesto.

Parecia um espelho. Mas não era ele que estava refletido. Então alguém grita ao lado. “Marcel!”

Nome incomum, este. Ele olhou rapidamente para o lado, e viu quem chamava. Era uma menina loira, de cabelos presos num rabo-de-cavalo e olhos castanhos, levemente avermelhados. Era linda, a mesma menina que ele confundiu com Anne no carro, quando teve aquele desmaio. Ela corria em direção a ele, mas parecia nunca conseguir chegar.

E o que era estranho, era que a duplicata não repetiu o gesto. Continuou encarando o homem a sua frente, que se sentia como uma criança. Até que quando se deu conta, e voltou a atenção para aquele garoto, ele recuou alguns passos.

“Não é a mim que ela está chamando.”

- Quem é você?

“Eu sou Enzo.”

E ele acordou. Sua cabeça parecia rodopiar e então, ele conseguiu encontrar os olhos verdes de Anne Flamel, ou naquele momento, Amanda Lamarck.

- Está tudo bem. Foi só um pesadelo.

Ela parecia mais maternal. Mais delicada. Talvez atuando da mesma forma que antes, talvez estivesse alguém do lado e ela precisasse manter o personagem, sua esposa de mentirinha. Mas não havia ninguém. A sala estava escura e vazia, o que era estranho. Era de tarde quando ele dormiu. Não ouvia movimentação alguma em lugar nenhum.

- Foi só um pesadelo. – E Anne se inclinou. E Anne o beijou.

Enzo estava perdido. O que estava acontecendo? Tudo que ele pôde fazer foi fechar os olhos. Mas quando os abriu e voltou a encarar Anne, ela estava diferente. Seus cabelos eram negros, sua pele mais bronzeada. Os olhos, igualmente claros e penetrantes.

A sonolência brusca que o impactou de uma hora para outra, como se aquele beijo fosse um sonífero, o impediu de fazer qualquer coisa além de perguntar um tímido “quem é você?” que não soou muito bem. Um sorriso brotou da face dela e era provavelmente, o mais bonito que ele já viu.

- Eu sou Amanda...

- Esse é o nome que está usando, eu sei. Quero saber quem é você de verdade...

- Você está me confundindo, amor. Eu sou Amanda. Sua namorada, agora sua noiva... Não se lembra?

Uma pontada aguda na cabeça de Enzo e ele gemeu de dor, colocando a mão por cima do ferimento. Amanda?

- Eu posso te ajudar a lembrar. Mas eu preciso de uma coisa sua... Preciso da sua ajuda... você quer a minha ajuda? – Ela tinha um tom sedutor na voz. Enzo estava hipnotizado.

- Quem sou eu? De verdade?

Ela sorriu novamente. Só posso te dizer se você me ajudar, foi a frase que ecoou na cabeça do policial, enquanto a dor só piorava. Parecia mais um jogo de casal, eu faço se você fizer, naquele tom de deboche um do outro. Estava doendo a cabeça, cada vez mais.

- Eu posso fazer parar de doer, se você quiser... – Seus lábios carnudos se aproximaram da orelha do homem e fizeram seus pelos da nuca se arrepiarem. Por um momento, a dor parou. Mas hesitou em responder. Quando ela se afastou, séria, a dor voltou com tudo. Sua cabeça doía demais. Ele fez uma careta e levou a mão na cabeça mais uma vez.

- Meu amor, não vai conseguir nada desse jeito... se não quiser que eu te ajude, vai continuar sofrendo por nada...

- O que você vai fazer comigo?

- Não confia em mim?

Baque.

Alguma coisa havia caído. Era a mesa ao lado da cama. E Enzo estava no chão, tombado com as mãos na cabeça, com a luz do sol queimando seus olhos através do vidro da janela do hospital. Anne, ou seja lá quem fosse a mulher que lhe tirou daquele necrotério, estava lá, o ajudando a levantar. Ela seria uma atriz perfeita caso aquela expressão de preocupação fosse só parte da atuação de um casal de fachada. E a tal Amanda, a Amanda de verdade, desapareceu de uma hora para a outra. Incrivelmente, a dor havia cessado.

- O que aconteceu? – foi sua única pergunta. Seus diálogos se tornavam monótonos até pra ele mesmo. Ele nunca entendia nada.

- Você começou a convulsionar. E caiu no chão, de uma hora pra outra.

Doutor Paulo estava ao lado, olhando incrédulo. Sua expressão era como se estivesse observando um fantasma. Enzo, naquele momento, Felipe Lamarck, tentava se levantar com a ajuda da falsa esposa.

- Você é um milagre, senhor Felipe. Não era para estar vivo, mas se encontra inteiro e com essas dores e convulsões como sequela.

- Sequela de que, doutor?

- Você tem uma bala alojada na massa cinzenta. É uma área vital, uma responsável pelo armazenamento das memórias que você já viveu. Pelos danos, não era pra estar vivo, ou no mínimo, sem se lembrar de coisas básicas de quem você realmente é. É como se você estivesse se adaptado a isso, é simplesmente inacreditável.

Uma bala. Aquele tiro que ele levou no sequestro. Que todos pensaram que ele estava morto. Continuava ali. Um arrepio subiu por toda a espinha do ex federal.

Como ele estava vivo, apesar de tudo? E quem era a mulher que ele havia sonhado?

Anne se aproximou de seu ouvido e sussurrou, sem ninguém perceber.

- Que marca de batom é essa no canto da sua boca?

Então ele se lembrou do batom rosado que a mulher de seu sonho, tão misteriosa estava usando no momento em que conversaram. Mais uma pergunta para a lista.

- Essa moça fechou sua estadia esta madrugada, senhor. Posso ajuda-lo em mais alguma coisa?

Beco sem saída. Toni precisava ao menos saber onde encontra-la. Ela era suspeita, mas a princípio não podia levar o caso a polícia, oficialmente falando, ou corria o risco de ser afastado do caso.

- Você sabe se ela foi pra mais algum lugar, se existe alguém que pode me ajudar a encontrar esta mulher?

- Ela havia alugado um carro. Ela havia pego o panfleto aqui, nessa mesa, aliás, está bem ali na caixinha. Só não sei se vai vir a ser útil.

Era melhor do que nada. Pelo menos tinha um próximo passo.

- Obrigado senhor, tenha uma boa tarde.

Doutor Paulo saiu e fechou a porta. Anne não sabia se era seguro realizar a cirurgia de remoção do projétil preso dentro da cabeça do marido de fachada, ele poderia morrer, dessa vez sem volta.

De qualquer modo, precisava dar um jeito de sair de lá. Poderiam ser descobertos a qualquer instante, nem ao menos tinham documentos, não de quem eles disseram que eram.

- Precisamos ir embora assim que começar a escurecer. Vamos tomar um táxi até algum lugar em que possamos dormir. Pra onde nós vamos, eu não sei.

- Vamos ter que ficar o tempo todo fugindo?

- Você está morto. Depois de um tempo, você se acostuma a fingir que não existe na sociedade.

Havia um certo tom melancólico em sua voz.

- Você tem alguma ideia de onde nós vamos?

- Não...

- Será que isso não nos pode dar alguma pista, por menos que seja? – Enzo estava mostrando sua metade do medalhão partido. Realmente, eles não pensaram em tentar uni-los novamente.

Anne tirou a sua metade e encostou cada pedaço trincado com a outra metade. Era feito de ouro puro, as duas metades. Era visível ouroboros completo acompanhando o contorno da borda e um outro menor, em sentido oposto, no centro. Porem, existia duas coisas, parecendo asas entre um símbolo e outro. Mas uma delas não encaixava completamente ao resto d medalhão.

Foi Anne que percebeu esse detalhe. E pressionou o detalhe de ouro contra o medalhão simbólico.

Um clique se ouviu. E a parte do meio, bem no centro do símbolo menor do ouroboros se levantou, como um compartimento. Não era bem um medalhão. E não havia sido quebrado, não exatamente.

Havia algo dentro dele. Os olhos de ambos brilhavam.

Luke Tantini
Enviado por Luke Tantini em 24/07/2013
Código do texto: T4402683
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