Soleil - Parte 2 - Perguntas

- Eu não sei o que aconteceu, eu já disse!

Os dois estavam numa lanchonete de posto de gasolina, perto da estrada, e Enzo, ou quem era nomeado como tal antes de tudo, continuava entendendo menos do que a própria garota, dialogando com a boca cheia de salgados. Ele nunca sentira tanta fome na vida. Não que ele se lembrasse.

- Era pra você estar morto.

- Ah, muito obrigado pela consideração, senhorita.

Silêncio.

- Do que você lembra? – A ruiva finalmente perguntou.

- Eu... – Pausa. – De você me contando uma história.

A temperatura deve ter caído uns dez graus para Anne Flamel. Ele ouviu tudo. Ele sabia da verdade. Justo quem ela julgou que nunca o ouviria.

- Não se preocupe, Anne. Eu não sou de espalhar segredos de ninguém. A propósito, eu estou disposto a ajudar.

- Como?

- Você disse que precisava descobrir alguma pista, alguma coisa, de um cara chamado Soleil. E que isso podia te ajudar – ele mostrou a metade do medalhão de ouroboros que estava com ele, desde quando acordou, até durante o banho que havia tomado no quarto de hotel da garota, para tirar aquele cheiro de cadáver, pouco antes dela, ainda assustada, o levar para comer, já que nem onde havia comida o suposto Enzo conhecia. – Eu lembro de um nome. Pode ajudar em alguma coisa.

- Você sofreu um trauma sério no cérebro. Não era nem para estar vivo. Me dê uma explicação pra isso!

- Por que você precisa de uma teoria pra tudo? Eu não sei! Eu também quero descobrir. E algo me diz que não é a primeira vez que algo assim acontece. Essas dores de cabeça...

- Por que quer me ajudar? Vai acabar como todos os outros.

- Você tem medo das pessoas, não é? De se apegar demais e ter que eliminá-las depois.

- Vai jogar na minha cara mesmo?

Mais uma coxinha se acabou. O garçom veio, contente. A gorjeta da noite seria muito boa, aquele homem parecia que não comia a dias.

- Vai aceitar minha ajuda ou não?

- Qual é o nome que você se lembrou?

- Marcel Soleil.

Soleil. Soleil. Ele conhecia Soleil. Era mesmo quem procurava? O mesmo que seu pai procurou no passado? Ela só tinha um jeito de descobrir. Mas carregar por aí um desconhecido amnésico que voltou dos mortos e sabe de todos os seus segredos não lhe parecia uma garantia muito segura de tudo isso.

- Você está morto. Tecnicamente morto. Existem pessoas que você conhece que te viram naquele estado. Você realmente não se lembra de nenhuma dessas pessoas?

- Vou ter que repetir tudo de novo?

Ela se calou. Não era necessário. Ela estava tão incrédula que quase o matou ela mesma, naquele necrotério, depois de seu despertar. Fez as mesmas perguntas por todo o tempo na madrugada em que saíram do IML e foram escondidos para o hotel de Lara Milleni. Da suposta Lara. No posto de gasolina, ainda antes do sol nascer, ela já havia praticamente decorado toda as falas de Enzo. Ele não se lembrava de quem era exatamente. Dizia coisas sobre sua infância, mas eram fatos de muitos anos atrás. Não dava pra especular alguma coisa que aconteceu. Estavam naquele momento no Rio de Janeiro. Aparentemente, vivia ali, mas não fazia ideia de como ou quando ele se mudou.

- Eu não sei bem se posso confiar em você.

- Você está é com medo de acabar me matando de novo. E não, você não vai pegar o medalhão que minha mãe deixou pra mim antes de morrer e ir embora.

A mãe dele? Ele não havia contado nada disso.

- Minha mãe, eu nem sei ao menos o nome dela. Tudo que eu sei é que poucos antes de eu nascer, o carro onde meus pai estavam foi perseguido. O carro tombou, meu pai desapareceu, todas as pessoas que estavam nos seguindo, foram carbonizadas, mas não havia vestígios de fogo. Minha mãe andou sozinha pela madrugada até a casa dos meus tios, e entrou em trabalho de parto aos sete meses, mas não aguentou. A única coisa que me deixou foi isso. Fui criado com meus tios e minha prima, como eu já comentei antes. Mas não lembro de nomes. Nada.

- Não pode sair no meio da rua assim. Como eu te disse, você está morto, em todos os efeitos.

- Quer que eu fique em casa e faça o jantar pra quando você chegar? - Os olhos verdes penetrante focaram com uma expressão indecifrável para o “ex-morto.” – Não vou ficar parado enquanto você fica andando por aí procurando as respostas que eu também preciso. Eu nem sei quem eu sou.

Ela continuou encarando, como se avaliasse as possibilidades. O homem tentava deduzir pra qual idioma ela estaria traduzindo suas palavras dessa vez.

- Você não tem escolha, Anne Flamel.

Ela enrijeceu. Não queria que alguém ouvisse esse nome, nem por um único instante. Ela aprendeu a não confiar em ninguém, ninguém mesmo.

- Esse é o motivo da sua impotência de escolha. Tente me passar a perna e todos os seus segredinhos de Estado vão parar na mídia. Quero ver quem são os caras que vão te caçar, mesmo depois de anos de desaparecida, mesmo depois de até estar sendo tomada por morta, na Itália.

Um longo suspiro, seguido de uma pausa. E o silêncio entre os dois se quebrou.

- Tudo bem. Mas não podemos fazer nada por aqui. Alguém poderia reconhecer você. Entretanto, você precisa de uma identidade, ser identificado de algum jeito.

Um leve sorriso amarelo brotou do canto da boca do homem, segundos antes de levar a xícara de achocolatado na boca.

- Isso faz você se sentir menos culpada por estar comigo?

Realmente. Ele sabia mexer no psicológico. Ela estava pressionada, mas aliviada por isso. Não seria ela a causa de nada, pois dessa vez, ela estaria sendo chantageada, obrigada a obedecer. Apesar de insegura, estava menos inquieta.

- Sim... um pouco.

O sorriso apareceu de novo. Então, mais uma golada e a xícara se esvaziou.

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Toni não entendia como o amigo havia desaparecido assim.

Enzo era seu parceiro como policial. Eles eram melhores amigos, se a frieza habitual de Enzo permitisse tal feito. Mas era visível o quanto eles eram importantes um para o outro. O policial ficou extremamente perturbado depois de tê-lo visto morrer, depois de um trabalho de infiltração em um sequestro misterioso da empresa de sua própria família. O corpo que ele mesmo tratou de levar para o necrotério havia desaparecido sem deixar rastros.

O perito o havia chamado em plena madrugada, durante seu plantão.

- Mas como isso aconteceu Luís?

- Eu não faço ideia, mas sumiu! Assim, do nada, já era! – O médico estava assustado. – será que ele tava morto mesmo, Toni? Você viu o cabra estropiado? - Vi sim, homem, eu mesmo tratei de deixar ele aqui.

- Será coisa de assombração, ave Maria! – Luis parecia com medo, realmente com medo. Em vinte e três anos, nunca viu nenhum morto sumir assim, de dentro da gaveta.

- Defunto não sai andando assim, não senhor. – Toni estava pensativo. Olhou para os cantos da sala, procurando... e ali estavam as câmeras de vigilância. – Onde estão os caras da segurança, seu Luis?

O médico guiou o policial federal para uma salinha apertada, com vários monitores e um cara gordo de farda, com um grande crachá escrito Eduardo.

- Dudu, o rapaz aqui tá querendo te fazer algumas perguntas.

- Opa, posso ajudar?

Toni tirou o distintivo.

- Eu sou Antonio Heron, policia federal, queria dar uma olhada nas câmeras da sala de necropsia, se me permitir.

- Aconteceu alguma coisa, seu policia?

- Provavelmente, temos um roubo de cadáver.

O caminho no carro popular alugado em que os dois estavam continuava silencioso. Era tarde, muito tarde. As ruas estavam quase vazias, naquelas redondezas do bairro onde estavam. E Enzo, ou seja lá quem fosse de verdade havia percebido que Anne estava incomodada com essa situação. Porem, preferiu manter o silêncio. Não queria que esse incômodo pudesse vir a ser um estorvo para ela.

Um suspiro profundo. Olhadas no retrovisor. Então, o silêncio se rompe.

- Por favor, não me chame mais pelo meu nome de verdade. Enquanto eu estiver aqui, me chame de Lara.

- Tudo bem.

Mais uma vez. Silêncio mórbido.

- Você disse que eu não era Lara Milleni. Você a conhecia, pra ter tanta certeza, isso é fato.

- Eu sei o que você vai perguntar. Eu me lembro vagamente de algumas das coisas que você me contou mais cedo, mas não me lembro de ninguém com esse nome.

- Tudo bem.

Mais uma vez que o diálogo se torna silencioso. Enzo não aguentava mais ficar parado. Ficar pensando. Não aguentava mais pensar, sua cabeça doía demais, era de dentro pra fora.

- Pra onde exatamente estamos indo?

- Para um outro hotel, em outro canto da cidade. Tive que fechar minha estadia naquele onde estava, as malas estão no carro. Preparei tudo enquanto você estava no banho.

- Ah.

- Você não pode mais sair por aí do mesmo jeito. Precisamos só de um lugar temporário. Depois, temos que no mínimo sair da cidade. Não podemos deixar vestígio algum.

- Entendo... E ainda tem uma coisa... como você entrou naquela sala?

- Pela porta da frente. – A resposta mais óbvia fez a pergunta de Enzo parecer idiota.

- Eu quero dizer... você não tomou nenhum tipo de precaução?

- Invadi o sistema e apaguei as imagens que tinha na câmera de segurança. Ninguém vai saber que eu estive lá e muito menos que você saiu.

- Vão se dar conta de que o corpo sumiu.

- Mas não vão saber que ele saiu de lá andando. Até terem alguma coisa que possa levar até onde nós estamos, você já estará dado como desaparecido e possivelmente, morto.

- Algo nisso tudo não me cheira muito bem. Só espero que realmente não precise me preocupar. E quanto ao carro? Você não deveria ter uma carta brasileira pra dirigir isso?

- Depois eu dou um jeito de devolver. Tenho até essa semana, paguei adiantado o aluguel. E pra todos os efeitos, eu Anne sou estrangeira, mas eu, Lara, sou nativa daqui.

Enzo encostou a cabeça no vidro. O carro deu uma leve chacoalhada, o que fez bater a cabeça. Foi um baque de um sino dentro de seu crânio, que vibrou internamente, numa dor aguda.

- Desculpa...

- Tudo bem, não foi nada.

- Nada? Você tá bem?

- Sim, foi só uma batida... não morri por causa de um tiro, não vou morrer por causa disso.

- Você está sangrando! Muito! – Lara parou o carro e foi ver o que aconteceu. – Eu não vou te deixar ficar assim.

“Eu não vou te deixar ficar assim...” essa frase ecoou dentro do policial, que começava a ver o motivo da preocupação da garota ruiva a sua frente. Passou a mão nos cabelos e sentiu o líquido vermelho espesso por entre os dedos. A visão começou a ficar turva. A ruiva parecia loira, com olhos castanhos e alguns traços diferentes, mais joviais, igualmente belos, porém, uma adolescente. Ele não estava em um carro, estava em um corredor de um colégio, completamente deserto, exceto pelo fato da menina a sua frente. Aquilo não era uma visão. Era uma lembrança. Alternando entre a realidade e a lembrança, as vozes das duas se mesclavam nessa única frase, que ia, a cada sílaba pronunciada arrancando pedaços de sua consciência, dolorosamente, a cada segundo.

Ele não se lembrava se algum dia de sua vida, tivesse sentido uma dor tão alucinante como essa. Então tudo escureceu.

- Nenhuma imagem anormal? Nenhuma pista?

Toni estava desapontado. Quem quer que seja que roubou o corpo do amigo, era esperto. Ele não tinha parentes, não tinha vínculo emocional com ninguém que Toni conhecia, não podia ter sido levado para outro lugar a pedidos assim, alguém roubou, mas era um roubo muito bem feito. Não havia rastros de nada nem ninguém, o culpado manipulou bem as imagens.

- É, seu policia, parece que ninguém entrou nem saiu com nada aqui não...

E a fita continuava a rodar. Sem nenhuma anormalidade. Enfim, um único detalhe não escapou dos olhos de águia do agente federal.

- Aqui, volta um pouco. A mesa. Ela troca de posição desse frame pra esse – e foi apontando com o dedo – até esse ponto, a imagem ficou congelada de dentro da sala onde ficam os cadáveres. Quer dizer que alguma coisa a empurrou. Podemos encontrar algum vestígio ali. Vamos ver no detalhe da hora. Uma e quarenta e dois da madrugada. Agora, precisamos de alguma câmera da fachada e dos fundos. Mas provavelmente, se o responsável conseguiu manipular essas imagens, com certeza pegou a das câmeras externas também.

- E o que isso quer dizer? – Perguntou Dudu, o segurança.

- Vou dar um pulo nos prédios ao lado.

E assim se fez. Com seu distintivo ele tinha esse poder. Só precisava saber um instante exato. E ele conseguiu ver um casal passando na frente da fachada da construção à esquerda do IML. O homem era difícil de se reconhecer. E uma mulher, que ele já viu uma vez, naquele mesmo dia. Os dois estavam andando, mas não apareceram em nenhum momento na frente dos outros prédios, o que se pode deduzir que saíram de lá.

Ele precisava chama-la para depor. Não podia acusá-la, pois não havia como ela carregar o corpo, não havia provas de que era ela a culpada, nem se sabia o que tivesse feito, se é que ela fez alguma coisa. De qualquer forma, ele precisava encontrar Lara Milleni. Era esse o nome que havia visto em seu crachá.

E já sabia por onde procurar.

Luke Tantini
Enviado por Luke Tantini em 22/07/2013
Código do texto: T4399625
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