Soleil - Parte 1 - Desabafo
- Eu não sei bem o porque de estar fazendo isso. – A menina dizia em voz baixa, porém em tom audível no ambiente silencioso do necrotério. – Acho que estou ficando louca de vez. Talvez ainda tenho esse senso de dever de te agradecer. Por ter morrido ao me salvar de um sequestro? Um tiro fatal no crânio, bem na minha frente? É, provável que sim. Mas tem algumas coisas a mais. – Ela percorreu os olhos e o encontrou, com a identificação na porta da gaveta congelada. Enzo Tantini.
“Agora sou eu quem digo. Você não é Enzo Tantini. Da mesma forma que você me encarou quando ficamos sozinhos por um segundo naquele prédio, você olhou em meu crachá, e disse que eu não era Lara Milleni. Por um lado eu não sou a única que deve explicações. Mas você está morto. Eu nunca saberei quem é você. Mesmo assim eu te direi quem sou. Talvez eu só precise disso. Desabafar tudo com alguém, mesmo que não possa mas me ouvir. Talvez seja melhor assim. Já acabei com a vida de gente que eu amava por envolver nessa história. São muitos talvez nessa história.”
“Enzo Tantini. Policial federal graduado e treinado no exterior, com a equipe de elite, 23 anos de idade, solteiro, sem filhos. Sem parentes vivos.” – Ela lia a identificação. – “Se eu fosse me identificar por isso, seria Lara Milleni, 26 anos, graduada na Europa em Medicina. Mas não. Não pra você... Vou te contar uma história. Provavelmente a mais clichê de qualquer outro filme hollywoodiano.”
“Era uma família feliz. Um casal e sua filha. Quando a menina fez cinco anos de idade seu pai se despediu e saiu de casa. Uma semana inteira sem ver o pai, uma ligação é atendida pela mulher. No momento seguinte, mesmo que em uma fria e escura madrugada de novembro, a mulher tomou a filha e partiram de carro atravessando da França até a Suíça. Menos de um mês foi necessário para que viessem atrás delas. Eles procuravam pelo pai da menina e mesmo escondida, ela viu o que aquela dupla de desgraçados fizeram com a mãe, buscando pelo indivíduo desaparecido até da família. Por pouco ela não tem a mesma morte dolorosa. Aquelas imagens a assombram até hoje.”
“Parece meio óbvio dizer que aquela menina era eu. Eu fiz o que minha mãe havia mandado depois de me trancar naquele quarto do pânico. Havia um túnel subterrâneo e eu encontrei meu avô. Eu nem sabia que tinha um avô antes disso tudo. Uma identidade me foi deixada. Chantal Conus. Na época, com sete anos, mais velha do que eu realmente era. E comecei meus estudos. Aquele velho tinha uma biblioteca inteira no porão de casa. Livros sobre medicina, história, filosofia, engenharia, biologia, física, química, música, ocultismo, idiomas e de todos os outros tipos que se pode imaginar. Livros que poderiam me conceder muito bem o diploma legítimo de todos os diplomas falsos que eu tenho, modéstia a parte.”
“Então eu começo minha vida como Chantal. Algumas... coisas estranhas aconteciam de vez em quando, até meus quinze anos, dezessete se avaliar pela minha nova identidade. Coisas que qualquer um que ouvisse me chamariam de louca, embora você também não possa exatamente me ouvir. Acontecimentos esses que desencadearam na morte de meu avô. Mas ele havia deixado um testamento com algumas instruções para mim. Eu abri, e nele me dava a combinação de um cofre. Estavam todas as informações que eu sempre procurava sobre meu pai desaparecido e sobre os homens que vieram atrás de mim e minha mãe no passado, quando o procuravam. Havia algumas coisas que eles me deixaram também. Documentos, fotos, um colar com um pingente partido ao meio, com o formato e ouroboros e algumas cartas. Uma delas, em francês, de autoria da minha mãe, possuía uma frase, que dizia ‘Se o caminho pelo Rochedo for exaustivo, procure pelo Sol e descobrirá a verdade.’ Sol e Rochedo estavam grafados com iniciais maiúsculas, como um nome. Chantal é um nome cujo significado pode ser ‘Rochedo’. Sol em francês, é Soleil. Este, então, deveria ser aquele que tem as respostas. Então parti em minha busca, partindo para Holanda, onde ficava a sede de uma empresa de medicina química e eletrônica, onde meu pai havia sido chamado a trabalho na época em que perdi contato com ele. E lá eu conheci Sophie, provavelmente a única amiga que eu tive.”
“Sophie Tantini. Ela me disse uma vez que tinha um irmão. Enzo. Esse é o motivo pelo qual você não é Enzo Tantini. O irmão de Sophie morreu na infância. Eu sinceramente não acredito em coincidências e você provavelmente também não, por ter julgado que eu não era quem eu dizia ser. A pergunta é, qual o motivo pelo qual você foi atrás de uma identidade falsa como a minha? Quem é você de verdade, ‘Enzo’?”
“A partir daí eu comecei a cercar a todos em minha volta. Sophie estudava moda em Amsterdam, eu estava no curso de História da Arte. Eu já tinha esse diploma, falso, mas o que não me torna incapaz, entretanto precisava de um pretexto para estar por lá, continuar por perto. Sophie havia conhecido um cara, Ian McMillan. Estavam juntos a alguns meses. Não era nada pra mim, até eu descobrir quem ele era.”
“Ian tinha uma empresa de publicidade e fotografia, junto com seu amigo de infância, Matthew Van Doren, o Matt. Este, ao mesmo tempo que era sócio minoritário, que ajudava o amigo a manter a empresa com alguns investimentos, e por vezes satisfazia seu hobby de fotógrafo, na verdade exercia a profissão de advogado na empresa médica Heron. A mesma empresa que meu pai, Jacques havia trabalhado desde o momento em que havia desaparecido de casa. Eu precisava me aproximar daquele sujeito.”
“Parece meio frio da minha parte. Meio egoísta, e na verdade foi. O fato é que eu seduzi Matt na maior cara de pau. Eu não me perdoo por isso, ele merecia muito mais. Talvez, quando tudo isso acabasse eu poderia voltar e contar a verdade pra ele, talvez concertar as cosas que existiam entre nós. Eu falhei nesse ponto... de ter me apaixonado por quem deveria eliminar se eu me aproximasse ainda mais.”
“Eu fiz ele arriscar seu emprego. Fiz ele pegar os registros de meu pai e os registros de seu trabalho. Parece que ele todos os resultados do trabalho foram levados para um local no subsolo de Paris. Um endereço estava escrito no verso, mas nada havia sido especificado quanto o que se tratava, de fato. Então eu fui minuciosa e esperei até as férias do curso, em que Sophie iria para casa, na Itália, junto com Ian, que a encaixaria em seu elenco de modelos publicitárias, o que a ligara tanto com seu curso, e eu, supostamente ficaria esperando em nosso apartamento, para que pudesse modificar tudo que eu precisava para que meu plano desce certo. E aí que tudo começou a se fechar contra mim, ou quem fosse para ser eu.”
“Fiz questão de comprar uma passagem para Paris, no nome de Sophie Tantini. Depois, a passagem para Veneza, estava com o nome de Sophie, mas logo em seguida, o mudei, e coloquei-a como Anne. Anne Flamel, meu nome verdadeiro. A princípio, haviam duas Sophie. E eu, Anne, estava oficialmente desaparecida, o que a troca de nomes pudesse sugerir algumas coisas, como que eu e Sophie éramos próximas, o que procede, o fato de que não se sabe quem realmente seria eu mesma e em qual lugar eu estava. Eu sabia de um fato, entretanto. Eu era procurada tanto quanto meu pai, Jacques Flamel. Pelo mesmo motivo que minha mãe foi procurada e morta, em seguida. Só poderia contar com a sorte, para que seja lá quem fosse, buscaria por Sophie, e me desse um início de por onde devo começar. Eu estava jogando com a vida da única amiga que eu tinha. Esse é mais um fato pelo qual eu mesmo nunca me perdoaria.”
Uma lágrima escorria dos olhos verdes cintilantes da menina, que naturalmente era dois anos mais nova do que era e sua identidade falsa atual. Anne era muito diferente dos personagens que ela assumia. Uma mecha de seus cabelos cor de cobre cai sobre sua face, enquanto ela abaixa para esconder a lágrima. - Eu não sei por que esse tipo de coisa acontece, sabe? As pessoas que eu me aproximo, eu realmente me envolvo, mas eu preciso fazer algo para em livrar. Como se fosse uma maldição, eliminar as pessoas que amo. Eu devo ter algum tipo de problema psicológico quanto a isso, não, não talvez, eu estou falando com um cara morto, dentro de uma gaveta. Um cara morto que salvou minha vida. E que talvez tenha sido morto por mim como Ian foi, como Sophie, assim que desembarcou em Veneza, simplesmente desapareceu, com todos alegando que ela era eu, na verdade. Mas você salvou a pessoa menos nobre do que a atitude que o trouxe até esse destino cruel, mas que possivelmente, teria sido menos doloroso do que se nós tivéssemos nos conhecido de verdade.
“Eu descobri algumas coisas naquele endereço. Era na verdade, um cemitério. E seu complemento, era uma cova. Eu só podia ter certeza se eu fizesse algo antes de qualquer atitude. E acabei fazendo o que parecia menos racional possível. Eu desenterrei aquela cova e eu encontrei com caixão de madeira, velho, podre. Um homem estava se decompondo, em uma posição aparentemente desconfortável, revirado. Na tampa estavam marcas de unhas. O homem havia sido enterrado vivo, e em seu bolso, havia um crachá. Era Jacques Flamel, meu pai. E nas marcas de unha, pude encontrar um outro endereço. Um mausoléu trancado, no mesmo território sagrado. Não tive muito tempo para lamentar o quanto eu sentia falta do meu pai. Não tive tempo para absolutamente nada. Eu apenas fui para o mausoléu. E desci as escadas, como uma cripta.”
“Não me lembro por quanto tempo eu fiquei perdida nos subterrâneos de Paris. Aquela cidade é apenas um terço acima da superfície e dois terços abaixo. Passei fome nos esgotos, passei frio. E então encontrei uma espécie de laboratório. Computadores, enormes. Mostravam silhuetas humanas, duas, pra ser exata. Não sei muito bem o que eu fiz, mas algo que eu mexi acabou modificando alguma configuração a distância. Aquilo era algum tipo de monitoramento, ou controle, não sei, mas pelo que eu consegui ver, e depois acabei descobrindo em cima dos papéis que encontrei, eram coisas que deixariam até Frankenstein de cabelos em pé. Não gosto de lembrar disso. Mas havia me denunciado, aquele meu descuido. E estavam agora atrás de mim, e precisava mais do que nunca encontrar uma saída.”
“Nunca matei ninguém. Eu juro, nunca seria capaz. Os fantasmas de todos que eu acabei com a vida, até hoje ficam me torturando nos sonhos. Pessoas boas que me ajudaram. Até mesmo aqueles que eu evitei matar, querendo que eu morresse. Naqueles túneis, era coisa de vida ou morte. Tive que enxergar no escuro para sobreviver, me esconder no lodo e me alimentar de ratos, corria o risco de pegar alguma doença e morrer ali mesmo, agonizando. Mas se existem coisas que meu velho me ensinou era como sobreviver. De qualquer forma. Então eu aprendi a enxergar melhor no escuro. Foi assim por pelo menos três ou quatro dias. Aquilo era um labirinto sem fim. Era uma linha de trem, o local onde eu saí. Estava no meio dos trilhos. Estava vagando sem caminho, sem destino. Nem sei como ou quando, mas eu tomei um trem de volta a Amsterdam. No meio do caminho, eu desmaiei e pensei que ia morrer. Acordei em um hospital na Suíça.”
“Uma mulher me saudou quando acordei. Eu deveria ter uns dezenove anos como Chantal, ou como Sophie, mas como Anne, eu tinha apenas dezessete. Eu nem sabia qual desses nomes responder quando a mulher, aparentemente grávida, me perguntou. Ela era linda, a pele era bem clara, os olhos e cabelo, tão escuros que contrastavam de forma incrível com sua pele e sua boca rosada. Ela me disse que se chamava Anelise Hansen, a enfermeira que me salvou a vida. Eu, naquele momento, era Sophie Tantini. E só esperava não acabar com a vida da futura mãe também.”
“Alguns dias se passaram. Eu consegui me recuperar. Me lembrei onde estavam minhas coisas, tudo que eu consegui naqueles túneis infernais. A localização de tudo que eu precisaria. Antes de mais nada, precisava reunir tudo e começar a procurar por aquele que eu tinha certeza agora que realmente existia. Soleil era um nome, e um nome de um soldado brasileiro, que se tornou um herói civil no estado do Rio de Janeiro a mais de vinte anos atrás. Este homem estaria com todas as respostas para tudo. Foram dois anos inteiros tentando me manter fingindo ser alguém que eu mesmo mandei para a destruição.”
“Um tempo depois fui para Veneza, como Sophie Tantini. Disse sobre Ian, como se eu fosse a Sophie de verdade, e eles já sabiam que ele estava morto. Matt não conseguiu suportar a morte do amigo de infância e se livrou das ações, o que me dava uma preocupação a menos, ao mesmo tempo que me deixava preocupada com Matt. Assim que cheguei em Veneza, ele tinha me ligado. Eu queria muito poder atender, contar toda a verdade, dizer tudo pra ele, mas eu não podia, simplesmente não podia envolve-lo ainda mais. Minha primeira visão de como eram lindas as ruas alagadas da Cidade dos Amantes, foi ao mesmo tempo em que meu celular afundava com o nome do Matt ainda no visor.”
“Foram mais quatro anos procurando por pistas, paradeiros, informações. Quase acabei com toda a herança que me havia restado. Não vou parar até saber toda a verdade. Até entender o porque de tudo isso. Então eu descobri que você, que me salvou como tantos outros, não era só mais um que eu havia destruído por minha influência. Você tem algo que eu quero. E é o motivo pelo qual eu passei por tudo isso, passei por louca por desabafar com alguém que não vai me ouvir, mesmo que uma parte de mim quisesse que pudesse. O problema é exatamente esse. Se você pudesse me entender, eu nunca revelaria nada disso.”
“Mais uma vez, profanando uma sepultura. Me perdoe, seja lá quem for por não te deixar em paz, mesmo depois de morto.” – A menina finalmente abre a gaveta onde está o corpo. Ela encara bem aquele ser inerte, conservado, de modo extremamente incomum, mesmo para apenas algumas horas, antes de ser aberto e examinado. E ela deixa a mostra o medalhão. Que viera junto com as coisas no cofre do avô falecido, com o formato de ouroboros reconhecível, embora esteja partido ao meio. – “Você tem a outra parte. A parte que completa. Não sei o que isso significa, mas eu tenho que descobrir. A princípio, achei que você era o tal soldado, mas ainda assim, é muito jovem pra ter mais de quarenta ano de idade. Ainda me é um mistério quem é você. Gostaria de algum dia poder descobrir, “Enzo Tantini’...”
Anne estendeu a mão, mas parou por um momento. O tiro na cabeça. Não havia deixado nenhuma marca aparente? Não, não daquele calibre. Ela viu o dano que se fez. Agora, aparecia apenas marcas. Ela ficou uns segundos pensando. Mas não tinha muito tempo para pensar. Logo daria a hora em que os médicos legistas viriam, se livrariam dos bens e começariam o processo da necropsia. Então continuou. Abriu a blusa do casaco do homem que estava a sua frente, inerte. Começou a desabotoar a camiseta por baixo, até que avistou novamente o tal objeto, o mesmo que brilhou em frente aos seus olhos enquanto o homem quando vivo, a soltava de seu cativeiro, junto com outros reféns de um sequestro.
Foi só um toque na pele fria e ela segurou firme por entre os dedos a metade que faltava de seu medalhão. Queria descobrir se havia algo a mais. Por menos que fosse, precisava de mais alguma coisa para buscar. Então, uma mão a segurou.
Coração subiu pela garganta. A respiração ofegante foi instantânea, o susto, imenso. Ela tentava se soltar, mas ainda assim se recusava a acreditar no que via, no que sentia. Não era uma mão fria, não era uma mão morta. Não mais. Então os olhos se abrem, junto com a mão, e a menina se joga para trás, encarando aquela criatura recém ressuscitada.
- Ah, cara! Que dor de cabeça! – um estralo no pescoço. A situação parecia cada vez mais bizarra. O homem até então morto, agora sentado, se vira para a garota ruiva incrédula de olhos esbugalhados e pregada com as costas na parede, com um enorme ponto de interrogação no rosto. – Quem é você?
Silêncio.
- Por que eu estou em uma gaveta?