Sonorus - Primeiro Capítulo

Capítulo 1 - Choque no Litoral

A habitual maresia da manhã envolvia o vilarejo, acariciando as pequenas casas feitas de mármore. O leve som da água passando pelas ruas, em ritmo vagaroso, já fazia parte do cotidiano de seus moradores. Marolas batiam na soleira das casinhas de apenas dois cômodos. Pendurados em todas as portas jaziam minúsculos sinos, que a todo instante tilintavam em plena harmonia com o resto do ambiente. Estava começando mais um dia nesta incomum ilha e seus habitantes começavam a deixar o mundo dos sonhos, para assim voltar ao mundo material.

A luz do grande Rei Sol batia forte no rosto de Monique quando ela acordou. Sua pele era morena e seus cabelos castanhos, como todos da tribo, e seus olhos eram azuis, um marco de todas as mulheres que viviam na ilha. Ela tinha uma beleza única, além de esbelta e elegante, era linda por dentro. Sua docilidade e gentileza derreteriam até o mais duro dos homens. Levantou-se delicadamente da cama e foi até a janela. A claridade habitual inundava o ar. Ao longe viu a máquina mágica, que mantinha todas as nuvens afastadas e deixava o Rei Sol e a Rainha Lua reinarem pela eternidade. Ela foi construída pelo homem que veio do mar, e para Monique ele era uma benção para seu povo, um mensageiro da paz dos grandes reis. Mas não era assim que grande parte da tribo o via, achavam que ele era um presságio, um sinal de que os reis estavam descontentes com eles, acreditavam que um dia essas máquinas iriam se voltar contra eles.

Monique suspirou e foi se trocar, iria ter um longo dia pela frente. Cada pessoa da vila tinha uma função diferente. Os homens mexiam com a pesca e reparos, e as mulheres iam para os morros colher frutas e cuidar das pequenas plantações, outra coisa criada pelo homem do mar. Ele dizia que essa pratica se chamava agricultura e que era muito usado de onde ele tinha vindo. No meio de tudo isso, sua função era a de coletora. Vestiu um pequeno vestido, de cor lilás, pegou uma cesta e saiu. A água batia nos tornozelos de Monique, e enquanto caminhava tinha que tomar cuidado para não pisar nos pequenos peixes, tinha aprendido a respeitar até os menores dos bichos. O brilho do Rei Sol refletia na água e em ocasião nas paredes das casas, dando a impressão de que estava andando dentro d’água. Monique se dirigia ao maior de todos os morros, onde o homem do mar morava.

Jonas estava trabalhando como de costume, sentado à pequena mesa de madeira fazendo alguns cálculos. Apoiou as costas na cadeira e observou o mar. Toda vez que ele via essa vista perdia os sentidos.

“Como eu sou sortudo, o que eu fiz para merecer tudo isso?”, pensou Jonas melancolicamente.

Era uma ilha muito inabitual, o nível do mar era um pouco maior do que a grande parte da terra, quase toda a ilha era inundada pelo oceano, em alguns pontos chegava a bater nos joelhos dos nativos. Poucos pedaços de terra se mantinham acima da água, formando ao todo dois pequenos morros e um grande monte, todos pertos do centro da ilha. Os minérios do local eram de origem nobre, com abundância do mármore e de cristais. Nunca vira isso em outro lugar. A vegetação era extraordinária, com plantas e frutos de origem misteriosa. Muitas árvores tinham as raízes erguidas, dando a impressão de que poderiam andar a qualquer momento. Os poucos animais que se encontravam na ilha eram aves migrantes, devia ser por causa do eterno verão do local. Ela podia ser facilmente confundida com um desses contos de fadas, contadas pelos pais na hora de adormecer os seus filhos. Antigamente Jonas considerava histórias desse tipo uma fantasia do ser humano, como Deus e paraíso, mas agora era outra pessoa.

Essa ilha se tornou sua cápsula de escape, sua esperança, podia começar uma nova vida ali. Já estava lá há sete anos, e a tribo ainda o considerava uma ameaça, o temiam mais que as grandes chuvas. Mas ele não ligava para isso, com o tempo seus esforços seriam reconhecidos. Enquanto isso iria viver humildemente isolado, e iria fazer de tudo para ajudá-los. Como já fez uma vez, quando construiu a máquina que mantinha as nuvens afastadas – usando a tecnologia que arruinara sua vida passada -, e os salvou das tempestades oceânicas.

Ainda estava perdido em seus próprios pensamentos quando ouviu uma doce voz o chamar:

- Homem do mar! – gritou Monique.

Era assim que as pessoas da ilha o chamavam, achavam que ele era um mensageiro de seus deuses. Olhou para trás e viu a linda mulher, uma das únicas pessoas que falavam com ele.

- Oi. – gritou em resposta. – Já disse pra me chamar de Jonas.

- É mesmo. – falou a mulher. – Me desculpe.

- Não se preocupe com isso. – disse enquanto se levantava.

Na verdade, essa era a única mulher da ilha que tinha coragem de falar com ele, e tinha sorte, pois ela era linda. Todas as pessoas desse povo tinham uma beleza espetacular, todos eram fortes e atraentes. Devia ser pelo fato de viverem no meio da natureza e de não consumirem nada alterado quimicamente. A fonte de água doce vinha de um dos morros, em uma pequena nascente que se encontrava entre algumas rochas. Parecia uma cachoeira em miniatura. Havia pequenos cristais nas extremidades de onde saia a água, o que significava que embaixo daquele morro havia uma rica fonte de minérios. Uma coisa anormal, mas para falar a verdade, essa ilha inteira tinha uma essência sobrenatural, parecia até divino.

Jonas deu um largo sorriso e disse:

- Vindo aqui para coletar mais frutos? – perguntou.

- Sim, como todos os outros dias. – disse Monique rindo.

- Você não se cansa disso?

- Não... Realmente não. – concluiu ao ver Jonas franzir a testa. – Cresci fazendo isso, é impossível que eu não goste de fazer meu trabalho.

- É mesmo, eu suponho que essa lógica esteja certa. – disse enquanto coçava a cabeça.

- De novo você falando de jeito confuso.

- Desculpa. – falou esboçando um sorriso para descontrair.

Jonas sempre se esquecia que a tribo tinha uma linguagem muito limitada, isso incluía a de Monique. Uma das coisas que mais intrigou ele quando chegou à ilha foi a língua usada por eles. Era uma linguagem antiga, uma das primeiras que foi usada pela humanidade. Aprendeu ela na escola, era obrigatório aprender esses tipos de língua, para manter a tradição dos antigos.

Monique olhou por trás dos ombros de Jonas e perguntou:

- O que são essas coisas no papel? – falou enquanto apontava.

- Ah... Isso – disse – são alguns cálculos.

- O que são cálculos?

- É a base de tudo que eu sei. – falou Jonas. – Todas essas máquinas que fiz só foram possíveis por causa desses pequenos números.

A confusão dominou o rosto de Monique.

- Olha, quando você pega uma fruta e guarda na cesta, que estava vazia, quantas frutas tem na cesta?

- Uma só. – respondeu Monique com interesse.

- Sim, e se você pegar outra e colocar junto dessa, quantas frutas vão ter na cesta agora?

- Duas! – disse enquanto mostrava os números pelo dedo.

- Exato! – disse. – Isso é um cálculo. Um mais um, é igual a dois. Entendeu?

- Sim, entendi! – falou Monique mostrando entusiasmo.

- É isso o que faço nesse papel, mas com números muito maiores.

- Então você calcula quantas coisas você vai ter que colocar ali na máquina? – disse a garota com curiosidade.

- É mais ou menos isso.

Não adiantaria de nada Jonas continuar a tentar explicar o que era um cálculo, só iria confundir mais a mente de Monique. Ela era uma pessoa muito curiosa, vivia perguntando sobre tudo e todos.

Ela manteve a cabeça abaixada um pouco, parecia muito pensativa.

- Jonas... – ela hesitou um pouco antes de falar. – Você poderia me falar do lugar de onde veio, do reino dos grandes Reis?

- Não. – respondeu Jonas, agora com cara séria. – Isso é uma coisa que nunca vou te responder, não importa quantas vezes você me faça essa pergunta.

- Está bom. – disse abaixando a cabeça.

Jonas odiava fazer isso, a cara que ela fazia era de doer o coração. Ela era uma pessoa ótima, por dentro e por fora, e não queria destruir sua beleza suprema destruindo sua ingenuidade. Era uma decisão cruel, esconder a verdade - de que não existem os grandes Reis do outro lado do oceano, apenas mais seres humanos -, mas era necessário.

- Bem, vou começar meu trabalho. – disse esboçando um sorriso tímido.

- Ok.

Monique se virou e foi embora. Jonas se manteve no mesmo local, observando a linda mulher ir embora. Estava apaixonado por ela, tinha certeza disso, mas nunca iriam ficar juntos, nem se ela quisesse, para o bem da tribo e dela. O cientista já estava começando a achar que a maldade morava no coração de sua pessoa, de sua “tribo”, sua mente e alma já estava impregnada com ela, e tinha medo de infectar essas pessoas. Já considerou várias vezes a ideia de ir embora, sumir. Mas bastava olhar para aquela linda paisagem que seu egoísmo prevalecia, decidia ficar nesse paraíso.

O forte vento que bateu no rosto de Jonas o despertou. Não tinha tempo para ficar pensando em besteiras, tinha muito trabalho pela frente. Nesse mesmo dia tinha que da uma revisada na torre central, sem ela em perfeito estado todas as outras parariam de funcionar. Não podia se dar o luxo de ficar sem checá-la durante muito tempo, não havia mais materiais na ilha para construir outra.

Olhou uma última vez para o horizonte antes de se sentar e continuar seu trabalho. Mas algo ao longe o fez se sobressaltar.

- Mas que m...! – exclamou Jonas.

Era um barco vindo, a toda, em direção à ilha. Era de tamanho médio e parecia ser apenas um iate de veraneio, com uma pessoa no deque. Como o barco teria chegado lá? A expansão marítima tinha chegado tão longe assim? Jonas não tinha tempo para pensar nisso, não esperou dois segundos e começou a correr morro abaixo. Ainda tinha uma pequena chance de evitar o choque, mandando um sinal através da pequena torre central, ela iria mandar ondas sonoras que provocaria uma interferência em qualquer objeto eletrônico que poderia se encontrar no barco. Enquanto descia o morro, bem acima dele, Jonas pôde ouvir vários gritos, as mulheres da tribo já tinham visto o barco. Iria ser uma tragédia se aquilo colidisse contra a ilha, não apenas para ele, mas também para o povo. As pessoas do continente eram muito mal intencionadas, iriam ver esse povo lendário como uma fonte de dinheiro.

Meteu o pé ainda com os sapatos na água, e se dirigiu ao pequeno morro na frente, era lá que a torre estava. Agora a tribo inteira estava em comoção, os idosos saiam de sua confortável moradia para presenciar o fato. As crianças se amontoavam na praia, gritando, empolgadas com a situação. As mulheres continuavam a gritar lá de cima - Jonas chegou a ver Monique se pendurando numa árvore. Os homens urravam de raiva, e um em especial, que sempre odiou Jonas, olhou diretamente para ele e gritou:

- É CULPA DO MALDITO MÁGICO!!! – urrou Tupac apontando para Jonas. – EU AVISEI QUE ISSO IRIA ACONTECER, DEVIAMOS TÊ-LO JOGADO AO MAR!!!

Mal acabou de dizer isso, desatou a correr atrás do cientista. Jonas nunca foi um bom atleta, preferia ler um livro a jogar bola. Ele já estava no meio do caminho quando foi derrubado por Tupac. Rolaram morro abaixo e caíram na água. Tupac era enorme, parecia um touro, e consequentemente muito mais forte que Jonas, e foi com muita facilidade que ele botou a cabeça do cientista dentro d’água. Lutou com todas as suas forças, mas foi tudo em vão. Estava quase perdendo os sentidos quando tiraram Tupac de cima dele. Levantou-se, ainda zonzo, e ignorando os urros de ódio de Tupac, continuou a correr morro acima.

Subiu o morro aos tropeços, seu corpo latejava de dor, nunca tinha levado uma surra dessas. Correu o mais rápido que pode para alcançar a torre, mas já era tarde demais. Um baque estrondoso assustou Jonas, que caiu no chão, e a ilha inteira tremeu. Jonas se apoiou numa pedra e se levantou com esforço. O caos tomou conta da tribo, mulheres e idosos choravam, as crianças já não achavam mais as coisas engraçadas e corriam para os braços de seus pais.

Jonas viu seu mundo desabar novamente, se lembrou daquela noite que roubou um barco e fugiu mar adentro, sem destino. Todos os seus esforços foram em vão, tinha construído aquilo tudo por nada. Logo seu povo iria vir atrás dessas pessoas, e a inocência dessas pessoas seria roubada. Sentou-se e observou o céu, não estava mais tão bonito como antes. Abaixou a cabeça e recostou-a por entre os joelhos, não havia mais nada há fazer, apenas deixar seus lamentos saírem em forma de lágrimas.

Fabio Barreiro DOL
Enviado por Fabio Barreiro DOL em 14/10/2010
Código do texto: T2556389
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