Casamento à vista...



Ah, o primeiro ano da faculdade!...
Eu me sentia um verdadeiro E.T., um ser extraterrestre.
As aulas de Língua e Literatura Francesa, com a professora Fúlvia, para mim era como se eu estivesse em outro planeta: não entendia nada!
Havia Língua e Literatura Latina com o professor Dante; Teoria Literária, com o professor Casais Monteiro e a bendita Gramática Histórica com o professor Pinho: tínhamos que decorar toda a história e evolução de cada palavra que ele dissecava com um prazer inusitado!
E Lingüística, com o professor Borba? Aquele estudo científico da língua, a meu ver, tirava toda a poesia e encanto das palavras.
E havia as listas de leitura obrigatória: uns vinte livros de Literatura Francesa; o mesmo tanto de Literatura Brasileira e Portuguesa...
E eu que sempre fora uma amante da leitura, passei a achar tudo aquilo uma pesada obrigação...

E ainda havia o Diretório Acadêmico, com suas reuniões exaltadas e assustadoras. Estávamos em plena ditadura militar, era o ano de 1967: era um perigo ser estudante e participar de greves e reuniões estudantis.
Eu não era nada ligada em política; pelo contrário, era meio alienada. O irmão do meu namorado cursava o último ano de Química e liderava as assembléias do Diretório Acadêmico; eu já não entendia nada do que falavam e gritavam ali.
Logo no mês de abril a Universidade toda entrou em greve; na verdade eu achei um alívio, pois não estava indo nada bem e ainda tinha a minha escolinha para dar conta...

A greve acabou, as aulas recomeçaram.
Comecei a tirar notas baixas; isso nunca tinha acontecido na minha vida.
Eu tinha colegas brilhantes, entre elas a minha ex-professora da quarta série primária, Helena.
Quase todas haviam feito o clássico, o cursinho; estavam preparadas, conheciam os professores.
Eu me sentia deslocada; fiz amizade com uma turma de Ibitinga e Monte Alto; eles moravam em uma república e me acolheram como amiga.

O namoro continuava; esse namorado parecia que tinha vindo para ficar; ele se insinuava na minha vida, fazia amizade com meus irmãozinhos, tentava conquistá-los. Ele estudava à noite, tinha voltado a estudar naquele ano para terminar o ginásio. De dia trabalhava com o pai, que era comerciante; eles tinham um posto de gasolina recém inaugurado, bem perto da minha casa.

Chegou o final do ano e aconteceu o esperado: fiquei reprovada em Francês.
Nas outras matérias consegui passar, apesar de não ter tirado as notas brilhantes às quais eu estava acostumada.
No ano seguinte eu teria um desafio: cursar todas as matérias do segundo ano e mais essa na qual eu ficara em dependência.

Já a escolinha foi um sucesso, todos os onze alunos do primeiro ano foram aprovados, sabendo ler o suficiente para passar de ano!
Eu nem acreditava como tinha conseguido!

Quando vi que tinha sido reprovada, a minha “força propulsora” que hoje eu chamo de “anjo” entrou em ação: já nas férias de verão comecei a estudar francês.
E como sempre, sozinha; não pedi ajuda a ninguém. Peguei o dicionário, os livros do G.Mauger I e II e comecei a tirar todas as dúvidas e a estudar lição por lição, desde o começo.

Pois bem, quando chegou o ano seguinte, já iniciei com outro entendimento e com outra segurança: além de conseguir boas notas na matéria do ano anterior, também melhoraram as notas do ano em curso.
Esse “clic” foi semelhante ao que eu tinha tido no início do ginásio: passei a entender tudo, escrevia com facilidade; só não conseguia falar em francês com desenvoltura; mas percebo que tenho dificuldade de falar com desenvoltura também em português. Já quando tenho que falar em público parece que fico mais fluente.

Daí para frente acabaram-se as dificuldades. Estudava, é claro, mas tudo dentro da normalidade, sem grandes problemas. Lia os livros todos da leitura obrigatória; comprei na Livraria Francesa em São Paulo uma porção deles, outros herdei da tia Leonora.

O tempo todo da Faculdade eu passei namorando o Mauro; conheci a família dele no início daquele ano, no Carnaval.
Era a primeira vez que eu ia a um baile de Carnaval.
Fiquei deslumbrada, achei tudo muito bonito e enfeitado; a decoração, a banda, aquela gente toda bonita e muitas fantasias.
Ele me puxou pela mão, me levou até uma mesa, apresentou-me: meu pai, Rubio, minha mãe, Rita. Quando ele me apresentou à mãe, levei um choque; parecia que já a conhecia de algum lugar e era uma sensação desagradável! Ela era toda nariz empinado; foi seca e áspera comigo:
-Quer comer alguma coisa?
Respondi que não estava com fome, obrigada. E ela falou, olhando dura:
-A gente não come quando tem fome e sim quando está na hora de comer.

Pronto, não gostei dela!
Sempre detestei pessoas pontificantes, donas da verdade, cheias de provérbios, chavões e frases feitas. E essa é a descrição da D. Rita...

Naquela noite já tive uma amostra sobre o temperamento e as atitudes do meu namorado.
Começamos a dançar e brincar. Ele começou a beber uísque, eu tomei um pouco e já fiquei tonta; sempre fui uma pamonha para beber. Quis ir embora, ele ficou uma fera:
-Como ir embora, ainda é cedo!
Insisti e acabamos indo; ele bravo, brigando, estúpido.
Largou-me no portão de casa e foi embora, de volta ao baile. Eu fiquei chorando, assustada e sem saber o que pensar e o que fazer.

Hoje eu penso nisso e percebo que deveria ter terminado tudo ali mesmo, mas também sei que havia algo mais forte nos aproximando e que esse relacionamento não estava acontecendo por acaso. Quando se tratava desse assunto toda a minha inteligência sumia, eu não raciocinava, não pensava. Parecia que era algo inevitável, que eu não podia nem devia terminar aquele namoro: não era parte do script me separar dele.

No dia seguinte ele apareceu mansinho como um anjo, pediu desculpas, eu falei, falei, expliquei como eu queria, como eu não queria que fosse, e finalmente desculpei. E esse disco repetiu-se na minha vida toda ao lado desse homem...

Um dia meu pai finalmente falou algo:
-Filha, você tem certeza que quer mesmo ficar com esse moço? Agora você está na faculdade, pode conhecer outros rapazes...
Não quis nem responder, não cogitava em me separar dele. Não podia dizer que sentia um grande amor por ele; mas sentia atração, e parece que me apoiava nele. Sim, é isso: ele era forte, decidido, e eu me deixava levar. Eu não sentia atração por outros rapazes; não flertava com ninguém. Parecia que meu destino era ele...

Um dia ele chegou em minha casa todo embaraçado, dizendo que seu pai tinha falido; tinha perdido tudo e estava indo embora da cidade. Depois eu soube que o pai tinha feito uns negócios meio enrolados que não deram certo. Então o Mauro e o irmão mais velho, ficaram morando numa casinha velha que havia no terreno do posto de gasolina; os pais e o irmão mais novo foram morar em outra cidade, onde meu sogro arranjara um emprego.

Aí começou uma fase bastante dura para o Mauro. O irmão era estudante, estava noivo de uma moça já formada que trabalhava em Campinas e em breve ele ia terminar o curso de química, e se casar. Já o Mauro só tinha o posto de gasolina como perspectiva para o futuro e dispôs-se a trabalhar muito para conservá-lo.

Não foi nada fácil; o pai deixara muitas dívidas, havia processos, ações e promissórias para serem pagas em cartório. O Mauro corajosamente enfrentou a situação; ia conversar com os credores, negociava as dívidas e ao mesmo tempo tentava manter o posto funcionando, mesmo sem crédito e sem dinheiro. Ele foi valoroso; ainda era jovem e inexperiente; teve que aprender rápido e à força, senão perderia tudo.

Muitas vezes ele aparecia para almoçar em minha casa: estava sem dinheiro para comer. Aos poucos foi melhorando e passou a comer na pensão da D. Alzira. Ele mesmo lavava a própria roupa e dormia na casinha ao lado do posto.

Já o irmão não esquentava a cabeça; era boêmio, reunia os amigos, tocavam violão, cantavam, bebiam cervejas. No dia seguinte ele ia para a faculdade e não queria saber sobre o posto de gasolina e os negócios. Já o Mauro, apesar de mais jovem, atirou-se aos negócios e aos poucos foi conseguindo pagar as dívidas do posto.

O tempo foi passando; eu já estava no terceiro ano da faculdade quando decidi que era hora de casar.
Como todo homem, ele relutou um pouco, mas marcamos para o início do ano.
Eu já lecionava desde o segundo ano da faculdade numa Escola Técnica; meu pai tinha arranjado essas aulas para mim. Eu dava aulas de Português para classes enormes dos cursos técnicos, mais de 80 alunos na sala, a maioria muito mais velha do que eu. Como eu me virava para dar minhas aulas? Na verdade, não aprendi na faculdade. Como sempre, aprendi sozinha, consultando os livros didáticos e organizando as minhas aulas como podia. E me saía muito bem...

No final do ano ficamos noivos e eu anunciei a todos que nos casaríamos no início do ano seguinte. A minha turma da faculdade fez um “chá de cozinha”. Teve bolo, presentinhos, brincadeiras, tudo que eu tinha direito!

Agora vejo mais claramente que apesar de ele ser o forte, o decidido, o líder, quem conduzia as coisas era eu, apesar de parecer muito dócil e passiva. Eu sabia bem o que estava fazendo e conhecia a pessoa com quem estava me casando. No meu íntimo eu tinha noção que não seria fácil aquele relacionamento, mas eu sentia que tinha que viver essa experiência e permitir que a Vida realizasse seus propósitos.

    continua...                      



Malu Thana Moraes
Enviado por Malu Thana Moraes em 24/08/2009
Reeditado em 25/10/2009
Código do texto: T1772459
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