Uma Simples Mulher - Capítulo 3
Capítulo 3 - A Casa Velha
No fim do ano passei para o segundo ano e surpresa: nova mudança de casa! E desta vez para pior; as coisas não iam bem financeiramente e meu pai alugou uma casa na mesma avenida D. Pedro, só que mais longe do centro.
Era uma casa grande e velha; a pintura estava toda escura e descascada. Na frente, o jardim: canteiros com espirradeiras, aquela que dá flores cor de rosa; buxinho, um arbusto que costuma ser podado em vários formatos e o inesquecível pé de manacá, com suas florzinhas tão perfumadas! Do lado direito um corredor largo e em seguida o quintal enorme cheio de árvores. Havia todo tipo de frutas: parreira de uvas, pitanga, jabuticaba, caqui, pêra, caju, mexerica, goiaba e até um enorme pé de abacate. Uma festa: o chão era de terra batida; também tinha um galinheiro e um quartinho e banheiro para empregada.
Aquela casa foi mágica e trágica; foi muito marcante em toda essa fase da minha vida. Era uma casa confortável e espaçosa, só que totalmente abandonada, precisando de reforma, pintura e cuidados. Agora percebo que ela refletia a nossa família, que se encontrava na mesma situação...
Do lado direito tinha uma grande terraço, comprido, com arcos na volta toda e em cada arco uma persiana. E no fundo do terraço, já quase chegando à parreira de uvas, ficava a minha escadinha de três degraus encerados, onde eu passava horas brincando.
Havia uma sala grande, dupla, cujas janelas davam para esse terraço. Eram janelas antigas, com vidraças e venezianas de abrir lateralmente. Muitas vezes eu sonhei que fechava todas as janelas, com medo de algo que estava lá fora e quando acabava de fechar a ultima, lá estavam todas abertas novamente!
Os quartos, como em todas as casas antigas, davam para a sala. Eram três, sendo que o quarto dos meus pais era duplo, tinha um “quarto de vestir”. Saindo da sala, um corredor; à direita, o banheiro, antiqüíssimo, com banheira de pezinhos, janela de madeira. À esquerda, a cozinha, enorme, com janelas e portas antigas, de madeira. Saindo da cozinha, uma escada de uns seis degraus (a casa, para completar, tinha porão!), aí vinha o tanque e o imenso quintal.
As paredes tinham rachaduras enormes; nas noites de tempestade eu ficava apavorada; achava que a casa ia cair nas nossas cabeças. O quintal era uma festa durante o dia; à noite era escuro e assustador! Eu vivia encarapitada nas goiabeiras, no cajueiro e até no alto do abacateiro eu subia; lá de cima dava para ver todo o quarteirão!
Nessa fase eu brincava muito com a molecada da rua, jogávamos bola queimada e pega- pega até depois de escurecer. Meu pai me transferiu para um grupo escolar que ficava mais perto de casa, no antigo Largo da Câmara e eu já estava no segundo ano: ia bem, tirava boas notas e adorava acompanhar a professora, D. Irene, por um trecho do caminho na saída de escola.
Nessa época, já com uns oito anos, ganhei de meu pai duas coleções de livros: o Reino Infantil, de contos de fadas e toda a obra infantil do Monteiro Lobato, em 18 volumes encadernados na cor verde. Ali comecei a entrar no mundo mágico da literatura: o Sítio do Picapau Amarelo, Emília, Pedrinho, Narizinho, Dona benta, Tia Nastácia. Eu lia, lia, lia muito; brincava no quintal, na rua, ia para a escola, andava de bicicleta (agora eu já tinha uma bicicleta grande, preta) por toda a vizinhança. E tudo isso eu vivia completamente afastada da família, como se não existisse mais ninguém, só eu e o meu mundo.
Mas existiam os outros e as coisas não iam nada bem. Meu pai, não sei como, comprara em sociedade com seu irmão uma fazenda, onde plantavam cana. Íamos para lá todos os domingos, num caminhãozinho verde de carroceria de madeira, uma gracinha, acho que era um “Ford de bigode”. Nessa altura, meu irmão já tinha uns quatro anos; minha irmã estava namorando e minha mãe, pasmem, estava grávida novamente!
Íamos aos domingos para a fazenda, todos na carroceria do velho Ford de bigode, era uma aventura! No caminho brincávamos que havia o morro da tarântula, a aranha de um filme de terror que estava nos cinemas da época. Na fazenda, íamos pegar peixinhos de peneira no riacho; catávamos gabirobas, umas frutinhas perfumadas; comíamos pão feito em casa no forno de lenha com café, andávamos a cavalo. À tardinha voltávamos, já escurecendo.
Meu pai não tinha sorte: um dia vieram chamar dizendo que tinha alastrado fogo no canavial. Ainda não estava na hora de cortar, perderam toda a colheita. Ele vendeu a parte dele da fazenda, mas ficaram muitas dívidas, dívidas eternas que não acabaram nunca mais!
Ele sempre culpava a doença da minha mãe:
-Não tenho mulher! Desde que sua mãe foi internada, gastei muito, nunca mais me recuperei!
Foi ficando triste, amargo, desiludido. Chegou a se interessar por política, acho até que se candidatou a vereador, mas também não deu certo. Começou a freqüentar bares, acomodou-se com o ordenado de inspetor de ensino, mas sempre lutava com as dividas, com os famosos “papagaios”, empréstimos que fazia nos bancos.
Minha mãe, cada vez mais nervosa, brigava, falava sozinha, xingava. A vida foi ficando insuportável; meu pai ficava nervoso, gritava com ela, não adiantava. Percebo agora que as crises vinham em ciclos: ela nervosa, ele nervoso, ia piorando até que um dia ele explodia, gritava, quebrava algum objeto da casa; aí ela ficava prostrada, alquebrada e sossegava por alguns dias. Depois o inferno recomeçava.
O irmãozinho caçula nasceu naquele clima. Era uma criança linda, nasceu grande e forte. Tinha a pele e os cabelos claros como os da minha mãe; ele era muito saudável, cresceu logo. Minha irmã, eu e a Nadir, a filha da D. Amélia, empregada que morava lá com a filha, revezávamos para tomar conta do nenê. Eu era terrível, brava, nervosa, não queria ter obrigações, nem ajudar em nada lá em casa. Na verdade, não tínhamos disciplina, nem ninguém ensinava ou orientava nos serviços e obrigações.
Um dia começou uma movimentação diferente em casa. Meu tio Sylvio, que era médico veio e aplicaram umas injeções em minha mãe. O clima era tenso, porque ela se recusava e eles insistiam que ela aceitasse tomar os remédios. Eu ficava escondida pelos cantos, espiando; ninguém me explicava o que estava acontecendo.
Escutei o comentário:
-Maria Judite é forte como um touro! Já tomou doses fortes de sedativo e não dorme de jeito nenhum!
Eles iam interná-la à revelia, já que ela se recusava violentamente.
Aquilo tudo foi muito chocante. Chegou uma ambulância, ela finalmente dormiu, saiu de maca! Eu fiquei espiando tudo, assustada! Ninguém me explicava nada! Para onde ela ia? Aquilo doeu como se fosse um pedaço de mim indo embora, sinto ainda hoje! Ao mesmo tempo sentia um alivio, como se agora tudo fosse ficar mais leve e mais fácil.
Mas não era bem assim. Minha irmã estava com uns quinze anos e teve que assumir a casa e um bebê novo de seis meses. Havia a D. Amélia, empregada, a Nadir, sua filha, minha irmã Marli, eu, o meu irmão Alcindo Júnior, o nenê e meu pai. Havia também a cachorrinha Laika, que era da família. A Marli estava namorando firme com o Claudio, que também freqüentava a casa.
Hoje percebo que havia uma enorme perturbação espiritual. Meu pai freqüentava bares, mas nunca perdeu o controle dentro de casa, sempre manteve a linha e cuidou bem de nós. Na verdade, nada nos faltava, na medida do possível: comida, roupa, escola, empregada. Meu pai nunca nos abandonou e sempre lutou sozinho para manter a casa em pé. Mas havia toda essa desarmonia e todos esses conflitos, porque minha mãe tinha uma sensibilidade aguçada que captava como uma antena todas as perturbações e as manifestava como podia.
Infelizmente havia pouco entendimento sobre a parte emocional e espiritual; faltou o apoio e o amparo que a oração pode proporcionar, mas na verdade o Universo nunca nos desamparou.
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Abraço a todos!
Malu