Ana Luz E A Busca Pela Inspiração

Ana Luz E A Busca Pela Inspiração

Um dia, Ana Luz, que é uma menina muito pensativa, pôs-se a pensar no que gostaria de ser quando crescesse. Na profissão que gostaria de exercer quando se tornasse adulta.

Por sua cabeça, passaram inúmeras idéias. Todas muito interessantes.

Vejamos algumas delas e suas conseqüências para a menina!

Primeiramente, passou-lhe pela cabeça ser Médica – como sua tia Clarita.

Cuidar das pessoas, curar os doentes, salvar vidas... Tudo isso seria muito bom. Entretanto, Ana Luz não podia ver sangue.

Bastava uma gotinha mínima escorrer por um pequeno corte para que a menina ficasse apavorada, a ponto de quase desmaiar, o que tornaria a Medicina uma profissão impossível para ela.

Depois, passou-lhe pela cabeça ser Professora – como sua mãe – Dona Clarice. Contudo, após imaginar o quanto poderia ser cansativo dar aulas, vistar cadernos, corrigir tarefas e provas dos alunos, ser obrigada a participar de várias reuniões, ouvir possíveis sermões de uma Diretora e, além disso, tomar conta de uma casa grande – como a sua, de um homem bastante ocupado – como seu pai, de uma menina em plena fase de crescimento – como ela – e de um bebê frágil – como seu irmãozinho – o pequeno Luciano, Ana Luz, desencorajada por seus próprios pensamentos, resolveu desistir do Magistério.

Em seguida, passou-lhe pela cabeça ser Advogada – como seu pai – o Sr. Lúcio. No entanto, bastou-lhe pensar nos inúmeros livros que ele sempre precisava consultar, nas várias noites que ele, muitas vezes, passava em claro e no quanto ele era ocupado, para que também desistisse do Direito.

Assim, diversas profissões passaram pela cabeça de Ana Luz, até que uma idéia realmente interessante começou a tomar forma em sua mente: Ser Escritora – como seu avô – o Sr. Clarêncio.

O Sr. Clarêncio não precisava ver sangue; não precisava dar aulas; não precisava vistar cadernos; não precisava corrigir tarefas e provas dos alunos; não precisava ouvir possíveis sermões de uma Diretora; não precisava ser obrigado a participar de reuniões; não precisava tomar conta de uma casa grande; não precisava cuidar de uma família; não precisava consultar muitos livros; não precisava passar noites em claro; não precisava estar sempre ocupado. Ele só escrevia, hora com papel e caneta, hora em sua antiga máquina de escrever, hora em seu computador.

Uma pergunta, porém, passou a visitar constantemente os pensamentos de Ana Luz:

“Se, para ser Escritor, só são precisos papel e caneta, ou uma antiga máquina de escrever, ou um computador, por que é que não são todas as pessoas que têm essas coisas em casa que se tornam Escritores?”

Ana Luz queria muito saber a resposta desta pergunta. Pergunta que somente um Escritor poderia lhe responder com propriedade. Por isso, assim que teve a oportunidade, dirigiu-se, o mais depressa que pôde, à casa de seu avô Clarêncio, que se localizava a poucos passos da sua.

Lá, após saciar sua sede com uma transbordante caneca de chocolate quente e matar sua fome com uma farta porção dos deliciosos bolinhos de chuva preparados por sua avó Luzia, Ana Luz fitou, curiosa e demoradamente, os sábios olhos do avô, que, adivinhando o que podia ser lido no íntimo da neta, disse-lhe as seguintes palavras:

“Acho que eu já sei o que é que estes seus olhinhos curiosos querem saber! Algo me diz que você andou pensando na profissão que gostaria de exercer quando crescesse e deseja saber do que é que alguém precisa para ser Escritor – como eu, além de papel, caneta, máquina de escrever, computador... essas coisas! Será que eu acertei, eim, minha netinha querida?”

“Sim! O senhor acertou!” – falou Ana Luz, exibindo, em seu belo e transparente sorriso de criança, um misto de surpresa e felicidade.

Foi então que, no curso de um inesperado gesto, o Sr. Clarêncio abraçou fortemente a neta, suspendeu-a sobre seus ombros e, encostando a fronte da menina à sua, disse:

“Um Escritor precisa, acima de tudo, de Inspiração! Sem Inspiração não lhe adiantam papel, caneta, máquina de escrever, ou computador! É pela Inspiração que se começa um texto!”

“E o que é Inspiração?” – perguntou Ana Luz, acesa de curiosidade.

“Se você quer ser escritora, minha linda netinha, você mesma precisa descobrir, sozinha, o que é Inspiração! Afinal, nem sempre o que é Inspiração para mim é Inspiração para você!” – respondeu o Sr. Clarêncio com muito cuidado, temendo desapontar a neta que ele tanto amava.

A resposta dada pelo avô não desapontou Ana Luz. Mas, deixou-a bastante intrigada, com a cabeça cheia de questões. Questões cuja resposta somente ela mesma poderia descobrir.

“Como será que é essa tal de Inspiração? Onde será que ela mora? O que será preciso fazer para encontrá-la? Será ela uma coisa ou um ser? Se for uma coisa, que forma terá? Se for um ser, com quem se parecerá?” – assim pensava a menina, enquanto se despedia de seus avós e voltava para sua casa.

Nas semanas seguintes, a preocupação com as provas bimestrais da escola afastou temporariamente Ana Luz de seus questionamentos em torno da “misteriosa natureza” daquela palavra nova que seu avô, o Sr. Clarêncio, lhe havia apresentado.

“INSPIRAÇÃO!...!”

Bastou, porém, chegarem as férias, para que a menina não hesitasse em concentrar todo o seu interesse, todas as suas atenções e todos os seus esforços em torno de um único objetivo: descobrir o que, ou quem, era, afinal, “essa tal de Inspiração”.

Quem conhece a história do raio de Sol sabe que Ana Luz, além de ser muito pensativa, é uma menina bastante determinada. Por isso, logo cedo, assim que pôde, ela saiu apressada à procura do seu tio-avô Clarindo.

Supôs a menina que, se fosse uma pessoa, a Inspiração devia morar bem perto da casa do seu avô Clarêncio, pois o visitava constantemente, fazendo com que ele escrevesse todos os dias.

O Sr. Clarindo era carteiro aposentado e, por esta razão, sabia de memória todos os endereços da cidade.

Ana Luz estava certa de que, se perguntasse ao tio-avô o endereço da Inspiração, ele não se negaria a lhe responder.

A menina já sabia o que faria assim que descobrisse onde morava a Inspiração.

Iria imediatamente à casa dela e, se conseguisse ser atendida e fosse recebida pela ilustre moradora, conversaria longamente com ela, comunicaria seu desejo de ser Escritora e lhe pediria que a visitasse de vez em quando.

Não foram necessários muitos passos para que Ana Luz chegasse à casa do Sr. Clarindo. Nem foi preciso esperar muito tempo para que ele a visse à porta, a atendesse e, alegremente, a recebesse.

“Bom Dia, Ana Luz!”

“Bom dia, tio Clarindo! O que te traz aqui tão cedo, e logo no primeiro dia de suas férias?”

“Estou à procura de um endereço.”

“De um endereço?”

“Sim. De um endereço.”

“E de que endereço você está à procura?”

“Estou à procura do endereço da Inspiração. Gostaria de saber onde ela mora, para poder visitá-la.”

“Visitar a Inspiração? Que história é essa? Explique-se melhor, para que eu consiga entender!”

“É que eu quero ser Escritora quando crescer e meu avô Clarêncio, que é Escritor, me disse que, para ser escritor, é preciso encontrar a Inspiração.”

“Ahhh!, Sim!... Encontrar a Inspiração!... Já entendi! Eu não posso dizer a você o endereço da inspiração.”

“Por que não?”

“É que a Inspiração não tem casa. Ela não é uma pessoa. Você me entende?”

“Sim, entendo. Muito obrigada, tio Clarindo! O senhor me ajudou muito. Vou continuar procurando pela inspiração.”

“Boa sorte, querida! Espero que você tenha sucesso.”

“Tchau, tio Clarindo!”

“Tchau, Ana Luz!”

Assim que acabou de conversar com o Sr. Clarindo, Ana Luz retornou à sua casa, dirigiu-se ao seu quarto, apanhou a pochet cor-de-rosa em que costumava guardar todas as suas economias e tornou a sair.

Ana Luz costumava guardar em sua pochet cor-de-rosa a metade das pratinhas que seus pais lhe davam como mesada e as prendas de ano bom que recebia de seu avô Clarêncio, de sua avó Luzia, de seu tio Clarindo e de sua tia Clarita. Com a outra metade das pratinhas, a menina costumava comprar chocolates na mercearia de Seu Rosalino e balinhas de gengibre na farmácia do Dito.

Ana Luz caminhava ansiosa, levando consigo, além de suas economias, o seguinte pensamento:

“Se não é uma pessoa, a Inspiração é uma coisa. Então, para procurá-la, devo ir aos lugares onde se adquirem coisas. Devo levar comigo todas as minhas economias. Afinal, eu sequer imagino quanto deve custar um pouquinho de Inspiração.”

Foi conduzida por este pensamento particular que a menina adentrou a mercearia de Seu Rosalino.

Assim que a viu, o dono da mercearia abriu para ela um largo e bondoso sorriso.

“Bom dia, menina Ana Luz!”

“Bom dia, Seu Rosalino!”

“Está tudo bem com você?”

“Sim, senhor. Comigo vai tudo bem.”

“E o seu irmãozinho Luciano, a Professora Clarice, o Dr. Lúcio? Eles estão bem?”

“Estamos todos muitíssimo bem, graças a Deus, Seu Rosalino.”

“Se você veio aqui atrás daqueles bombons com recheio de avelã de que você gosta, sinto lhe informar, mas, por hoje, eles já acabaram.”

“Não, senhor. Eu não vim aqui atrás daqueles deliciosos bombons com recheio de avelã. Vim em busca de outra coisa.”

“E de que outra coisa você veio atrás? Posso saber? Eim, menina Ana Luz?”

“Gostaria de saber se o senhor tem um pouquinho de Inspiração para me vender. Dou todas as minhas economias em troca!”

“Inspiração? Mas, inspiração não é coisa que se venda no mercado!”

“Tudo bem. Eu já entendi. Vou procurá-la em outro lugar. Muito obrigada, Seu Rosalino! Até mais ver!”

“Até mais ver, menina Ana Luz! Desejo que você tenha sucesso em sua busca!”

Após despedir-se de Seu Rosalino, Ana Luz partiu, a toda velocidade, rumo à farmácia do Dito.

Benedito José de Morais, mais conhecido como Dito, era um sujeito muito simpático e achava Ana Luz uma menina muito especial. De todas as crianças que ele conhecia, ela era a única que gostava de balinhas de gengibre.

Ao vê-la apontar na direção de seu estabelecimento, o dono da farmácia, que se entretinha fazendo algumas contas, suspendeu seus cálculos e esperou pacientemente pela menina.

Ana Luz, a seu turno, assim que adentrou a farmácia, nada quis esperar.

“Bom dia, dito!”

“Bom dia, Ana Luz! Veio à procura das suas costumeiras balinhas de gengibre. Não é isso?”

“Desta vez, não, Dito. Vim aqui à procura de outra coisa.”

“Outra coisa? Mas, que outra coisa veio você procurar em uma farmácia? Por acaso alguém da sua família está doente?”

“Não, dito. Não há ninguém doente na minha família.”

“Mas, então? O que veio você procurar aqui, na minha farmácia?”

“Gostaria de saber se o senhor tem alguns comprimidos de Inspiração para me vender. Dou todas as minhas economias em troca.”

“Comprimidos de que?”

“De Inspiração, Dito! O senhor nunca ouviu falar em Inspiração?”

“Olha, Ana Luz! Eu já ouvi falar em Inspiração. Mas, a Inspiração não é um remédio que se encontra na farmácia. Não existe Inspiração em comprimidos, em pílulas, em cápsulas, em gotas ou em injeções.”

“Mas, então, onde é que se vende “essa tal de Inspiração”? Procurei na mercearia de Seu Rosalino e ele me disse que Inspiração não é coisa que se vende no mercado! Agora, eu venho aqui e o senhor me diz que a Inspiração não é um remédio que se encontra na farmácia!”

“Veja bem, Ana Luz! A Inspiração não é algo que está à venda. A Inspiração vive dentro da gente.”

“Como assim, “vive dentro da gente”?”

“Acho melhor você perguntar isso ao seu avô Clarêncio. Ele saberá como responder. Afinal, ele é escritor. Conhece bem a Inspiração.”

“Tudo bem, Dito. Acho que vou fazer isso mesmo. Muito obrigada!”

“Quem lhe agradece sou eu. É sempre bom ver você.”

“Tchau, Dito!”

“Tchau, Ana Luz! Espero que você consiga descobrir o que é a Inspiração.”

Triste por não ter conseguido cumprir o objetivo de sua expedição, Ana Luz seguiu o conselho de Dito e dirigiu-se à residência do seu avô Clarêncio.

Por três vezes, a menina chamou pelo avô. No entanto, foi Dona Luzia quem a recebeu e a conduziu a encontro do escritor.

Logo que viu o Sr. Clarêncio, Ana Luz não pôde se conter. Chorou copiosamente.

Surpreso, porém, calmo, o velho escritor enxugou lentamente as lágrimas da neta e, em tom afável e acolhedor, deu-se, entre os dois, o seguinte diálogo:

“Acho que bem conheço a causa do seu choro, Ana Luz. Você ainda não conseguiu descobrir o que é a Inspiração. Foi à casa do seu tio Clarindo. Deve ter ido à mercearia do Rosalino e à farmácia do dito à sua procura. Mas, não a encontrou.”

“Pois é, vô, eu não a encontrei. Mas, o Dito me disse que a Inspiração “vive dentro da gente” e me aconselhou a procurar pelo senhor e pedir que me explicasse como é que isso acontece.”

“É, querida, o Dito tem razão. A Inspiração vive mesmo dentro da gente. Contudo, ela não se explica.”

“Como assim, não se explica?”

“Simplesmente, não se explica. Você se lembra dos versinhos que compôs para sua mãe no dia das mães do ano passado?”

“Sim, eu me lembro.”

“E você consegue explicar como foi que eles surgiram?”

“Acho que sim. Foi só eu pensar na mamãe e no quanto eu gosto dela que eu comecei a sentir um vento soprar dentro de mim. Aí, os pensamentos foram se alinhando, as idéias foram se encontrando, as palavras foram aparecendo e os versinhos surgiram.”

“Pois bem, querida netinha, você acabou de descrever a Inspiração.”

“Então, Inspiração é isso? Essa espécie de vento que sopra dentro da gente e faz os pensamentos se alinharem e as idéias se encontrarem.”

“Sim, Ana Luz. A Inspiração é exatamente isso.”

“Que legal!”

“E o senhor sente isso sempre?”

“Sinto isso muitas vezes, mas, nem sempre. Às vezes, a Inspiração me falta.”

“E o que é que o senhor faz quando lhe falta a Inspiração?”

“Eu, simplesmente, espero. Porque a Inspiração sempre volta para quem a trata com carinho.”

Depois de ouvir os preciosos ensinamentos transmitidos pelo avô, Ana Luz despediu-se dele e voltou para casa contente, satisfeita e decidida a ser uma escritora quando crescesse, pois tinha aprendido, enfim, e, sem sombra de dúvida, saberia pôr em prática o significado de uma nova palavra: “Inspiração”.

Hebane Lucácius