O CELULAR
(Inspirado num fato real)
Um advogado de uma determinada cidade, a quem vamos chamar de Dr. Rodésio, faleceu de repente. Como era muito querido por seus amigos e familiares, em seu velório havia um clima de forte comoção. Reinava um silêncio, por assim o dizer, pré-sepulcral na capela mortuária, somente quebrado pelos soluços baixinhos da inconsolável viúva.
De repente, o toque vibrante de um celular rompe a solenidade da situação.
Os circunstantes imediatamente se entreolham, sobressaltados. A maioria prende a respiração por um segundo e então olha severamente para os outros, com visível indignação. Dois ou três, cujos celulares estão programados para emitirem um toque parecido com o que soara, checam, envergonhados, seus próprios aparelhos, para logo em seguida demonstrarem alívio, e imediatamente assumirem o mesmo ar de censura dos demais. Ninguém assume a culpa pelo desrespeito. E o barulho continua, como que cada vez mais forte, mais irritante e mais insultoso.
Aos poucos, uns começam a perguntar aos outros quem seria o infeliz que teria deixado o celular ligado em pleno velório do Dr. Rodésio. Ninguém se acusa. Pelo contrário, uns começam a acusar os outros. Daí a pouco, todos começam a puxar os celulares e a comprovarem que seus aparelhos permanecem respeitosamente desligados. Mas o toque continua – pára e continua, pára e continua, como se alguém tivesse muita necessidade de falar com o dono do aparelho inquieto.
- Caramba - diz alguém - , seja lá quem for, que se retire, antes que acorde o próprio morto!
- Até parece que é isso mesmo que essa criatura está querendo - resmunga outro circunstante.
Então, o irmão do Dr. Rodésio se aproxima do caixão e percebe, dentro do bolso do morto, um pequeno movimento...
Antes que o susto o pusesse em fuga, porém, seu rápido raciocínio lhe explica o ocorrido. O irmão do morto enfia a mão no bolso do terno que haviam vestido no finado - seu terno preferido, diga-se de passagem - e encontra... o celular do Dr. Rodésio. Tocando.
Seu primeiro ímpeto é de desligá-lo, mas, ao perceber que todos os circunstantes o miram com estupefação, não resiste à própria curiosidade e atende o chamado.
- Alô?
- Alô. É o Dr. Rodésio?
- Não, é o irmão dele.
- Mas esse celular não é o do Dr. Rodésio?
- É. Quer dizer, era... Agora, a bem da verdade, não é mais.
- E o sr. sabe qual é o atual celular do Dr. Rodésio?
- Bem...
- Olhe, moço, eu preciso muito falar com o Dr. Rodésio. O sr. sabe onde eu posso encontrá-lo?
- Bem... Hã... Sei, sim...
- E onde ele está, por favor?
- Bem... Ele está aqui ao meu lado...
- E será que o sr. não poderia passar esse telefone para ele?
- Olha, no momento não vai dar para ele atender...
- Ele está muito ocupado?
- Não exatamente...
- Por favor, moço, é questão de vida ou morte!
- Eu diria que está mais para questão de morte - murmurou o irmão do falecido.
- Escute, o Dr. Rodésio está no Fórum?
- Bem... É, dá para dizer que é possível.... É possível que ele esteja na sessão de julgamento mais importante em que já se encontrou...
- E dá para o senhor pedir para ele me ligar assim que essa sessão terminar?
- Olha, acho que não vai dar para ele te ligar, não...
- Por quê? A bateria do celular dele está acabando?
- Não, moço. Acabou a bateria “dele”.
- Como assim?
O irmão do finado suspirou.
- Lamento lhe informar, mas o Dr. Rodésio faleceu ontem à tarde.
O silêncio que se seguiu era praticamente audível. De repente, a voz do outro lado da linha gemeu:
- Ai, minha nossa, e agora? E agora, o que é que eu vou fazer? - e os gritos do infeliz eram tão altos que o pessoal no velório podia ouvi-los. Uma velha pigarreou. Outra balançou a cabeça.
- Sugiro que o sr. procure um outro advogado - respondeu laconicamente o irmão do morto.
- Não dá! O Dr. Rodésio era o único que seria capaz de me tirar desta fria! Droga, mas ele tinha que morrer logo agora?
O irmão indignou-se.
- E o senhor, seja lá quem for, tinha que se meter nessa tal fria logo agora?
Seguiu-se um silêncio consternado e constrangido.
- Desculpe... Olha, desculpe, desculpe mesmo... Bem... Vou ter que dar outro jeito...
- Parece que sim.
- Então, tá. Hã... Um bom velório pra vocês.
E desligou...
FEVEREIRO DE 2008
Nota: embora esta história tenha sido inspirada num fato que me foi narrado como verídico, os nomes e a maioria das circunstâncias são fictícios.