OS FISCAIS
Eram ambos muito amigos, além de colegas. Trabalhavam na mesma repartição, como fiscais do Estado, lá pelas bandas do Vale do Jequitinhonha. Um dia chegou-lhes a ordem superior de que deveriam fazer as tais blitz fiscais, visitando cidades e interceptando caminhões com cargas. Uma amolação para os dois, que gostavam mesmo de trabalhar nas suas salas, emprestadas pela prefeitura, e de uma vidinha maneira, de casa para o trabalho e vice – versa, tendo como ponto de passagem o bar do Chico, onde tomavam a cervejinha diária que lhes abria o apetite do jantar e onde jogavam sinuca valendo o que bebiam. Moacir e Omar eram inseparáveis. Curtiam o mesmo estilo de vida, suas esposas eram parecidas e suas vidas eram simples e seguras. Não desejavam mais que isso, pra que? Tinham um salário que lhes permitiam um conforto muito além da média dos demais concidadãos, viviam naquela pacata cidade do interior, pescavam nas madrugadas “das águas”, batiam bola à tarde no estádio local, saiam para dançar com suas mulheres no “Night Club” aos sábados, transitavam com um jipe “chapa branca”, o que indicava status de autoridade, participavam ativamente do clube social e eram tratados com muito respeito e prestígio, principalmente pelos comerciantes. Mantinham, enfim, suas famílias dignamente.
Numa de suas maratonas fiscais pelas localidades próximas, debaixo de muita chuva e tendo que enfrentar mais de cem quilômetros de lamaçal, numa madrugada de primavera, lá iam os dois tensos pelas circunstâncias e morrendo de medo de assaltantes e de discos voadores, que diziam muito freqüentes na mata da Acauã, onde se encontravam naquele dia fatídico da efervescente década de setenta, às duas da matina. Dava para ver muito pouco à frente, mesmo à luz do farol alto do retorcido jipe. A escuridão que os rodeava era total. Ambos usavam óculos, mas o Moacir lutava com maior dificuldade, visto que suas lentes eram espessas e esverdeadas de tal forma que lhe aumentavam os olhos por detrás dos óculos como se estivessem num aquário. Naquela escuridão, atravessou-lhes um bicho, de lampejo, que atropelaram sob freada reflexa. Recuaram o veículo uns dez metros, em prudente marcha-à-ré, e, sob o clarão dos faróis, puderam avistar a enorme onça pintada estirada na estrada. Olharam um para o outro e para o troféu que tinham à frente, se conseguissem carregá-lo até a cidade. Mas quem dos dois iria confirmar o paradeiro do bicho . . .? Sobrou para o Moacir, que se encontrava no banco de passageiro. Muito barrigudo e ofegante, com aqueles óculos enormes de lentes verdes e entupido de pequi e do pé-de-porco da Parada do Quelé, lá foi ele, vagarosamente, e agora sob neblina de invernada, passo-a-passo, percorrendo os dez metros mais longos da sua vida. Ambos, muito atentos e apreensivos, reparando se o bicho ainda respirava, acabavam respirando pelo imóvel felino. Com sua fraca lanterna de mão, focalizada na cabeça daquela onça de olhos reluzentes e vidrados, Moacir inflou os pulmões, impulsionado pelo derradeiro ato de coragem e, prendendo a respiração, chegou a um metro e meio do enorme gato, quando o Omar, de dentro do jipe gritou: - Olha a Onça Moá! O pobre coitado soltou, de vez, todos os gases, líquidos e sólidos que continha, em desabalada carreira de volta ao veículo, sob nervosa gargalhada do amigo. Deixaram o bicho para trás, por falta de coragem de examiná-lo.
Ao Chegar em casa o Moacir justificou para a sua compreensiva mulher que o pé-de-porco da Parada do Quelé não lhe dera a oportunidade de sair do carro debaixo da maior tempestade que enfrentara na estrada. Desculpa que durou pouco, afinal mulheres não guardam segredos. É o que dizem!