O ADVOGADO DO DIABO E O CASO JORGE DA CAPADOCIA

Antes mesmo de cursar a faculdade de direito, o termo “advogado do diabo” aguçava a minha curiosidade, provavelmente estimulado pelo filme de mesmo nome, onde Keanu Reeves era o jovem e ambicioso advogado que trabalhou para o diabo, interpretado por Al Pacino.

Atualmente, o termo se refere a pessoa que defende pontos de vista com os quais não compactua, ou mesmo, pontos de vista moralmente indefensáveis. A origem do termo, porém, remonta a função exercida no processo de canonização. O santo ofício de advogado do diabo, foi instituído em 1587 e extinto em 1983.

No processo de canonização havia o "promotor da fé" e o "advogado do diabo", ambos os papéis desempenhados por advogados designados pela própria igreja. Ao promotor da fé cabia a defesa da canonização do candidato a santo; ao advogado do diabo, impedi-la, através de falhas nas provas dos milagres atribuídos ao candidato.

De posse dessa informação, foi então que a minha imaginação disse: eu consigo imaginar esse processo de uma maneira bem engraçada, olha só. Então, agora imagina o saguão de um foro, advogados aguardando para serem chamados, quando a servidora chama:

-Processo de canonização 23/4: caso Jorge da Capadócia!!

Primeiro entra o promotor da fé, seguido pelo advogado do diabo. Diante de ambos, o juiz inicia com a formalidades do processo de canonização, antes de passar a palavra para o promotor de fé que começa a sua defesa pela canonização:

-Excelência, estamos diante de um digno santo, a fé popular consagrou a sua santidade, ele morreu por sua fé.

-Protesto! -exclamou o advogado do diabo- Este é um processo de canonização, popularidade é pra BBB, a Fazenda. Estamos aqui para falar de milagres.

-Falarei do milagre, caro colega -rebateu o promotor da fé-, mas julgo necessário falar antes que Jorge foi perseguido, preso e ameaçado, tudo isso com o objetivo de fazê-lo renunciar ao seu amor por Jesus Cristo.

-Se renunciar à própria vida e acabar sendo martirizado se tornar critério pra canonização, em breve vamos estar fazendo o processo da Joana Darc.

-Pois fique sabendo que existia um dragão que oprimia o povo, eram dados animais e, às vezes, jovens a esse dragão. Um dia a filha do rei foi sorteada, foi quando Jorge apareceu para enfrentar o dragão. Fez o sinal da cruz e, ao combater o dragão, venceu-o com uma lança.

Com um ar de vitorioso o promotor da fé observa a fisionomia do juiz, que parece concordar. Sem se abalar o advogado do diabo reage:

-Salvou a princesa e matou o dragão, isso é o Mario Broz ao contrário. Essa história de dragão é apenas uma lenda que o pessoal conta faz anos.

Com ar indignado o promotor da fé rebate:

-Não deboches, nobre colega. Jorge foi o maior matador de dragões de todos os tempos.

-Dragões não existem! -repete o advogado do diabo, indignado-

-Exatamente porque Jorge é o maior caçador de todos os tempos! Dragão era uma praga aqui na região, que nem Javali. Era uma época boa, não tinha IBAMA pra reclamar que o Jorge tava matando muito dragão, ia desequilibrar a fauna. Então depois que ele matou o primeiro, ele pegou gosto e seguiu matando os outros. E não pense que ele cobrou, foi tudo trabalho voluntário. Eu dizia pra ele, fica fazendo esse trabalho de graça, não assina carteira, não recolhe uma previdência, depois não consegue se aposentar e não vão reconhecer o santo trabalho de matar dragão que estás fazendo.

-Protesto, excelência, não temos qualquer prova da existência de dragões.

No fim da história, o debate se estendeu e apesar de não ter provas o juiz, que era o Papa Gelasio I justificou o processo declarando-o entre aqueles “cujos nomes são reverenciados pelos homens com justiça, mas cujos atos são conhecidos apenas de Deus”, que era a maneira na época de dizer: não tenho prova, mas tenho convicção.

@oantonioguadalupe