Após 6 meses

"Quase Amigo"

Após 6 meses e cansado de esperar pela vacina, ignorei a pandemia e resolvi voltar para os braços de meus "quase amigos". Peguei o fusca 76, ajustei o banco, olhei o retrovisor e espelhos laterias, acionei a seta, engatei a primeira marcha, o motor roncou. Nem conferi o ponteiro sinalizador de gasolina, bem como o freio rumei ao encontro da antiga nostalgia.

Em certo trecho da viagem, a cor vermelha do semáforo (que estava sem máscara) impunha que Eu parasse o carro, o que fiz, obedientemente. Antes que Eu seja multado pelo julgamento dos moralistas, digo: parei antes da faixa de pedestres.

Um sujeito barbudo e maltrajado, mostrando duas moedas amareladas de ferro fundido não valendo mais que 1 centavo de dólar, apressou-se em falar comigo, o que fiz, obedientemente: "o patrão poderia ajudar o amigo e conterrâneo".

- Ei amigão, bem que Eu gostaria; mas repare dentro do carro, o tanto de badulaque. A muié me botou para fora de casa. Ficou com o papagagaio e o amante; e o resto, mandou andar. Deu linha na pipa, se é que entendi. Veio até as latinhas de cerveja que tomamos ao som da música "Garçom" do cantor brega, Reginaldo Rossi, que ouvíamos com as caixas estourando à margem do lago, em noites banhadas pela luz do luar. Éramos feitos, o sol e a lua.

- vai levar toda sucata para o ferro veio?

- sim, tudo; até o motorista.

- oxê, que bom que ocê se salvô!!

Cheguei à cidade. Parado, tudo como antes. A cidade é feita de gente; uma gente triste, que dava dó. Fui ao supermercado de uma porta, só.

Um foguetório aturdido. Todo mundo saía de dentro das alcovas para observar o alvoroço. Sem saber do que se tratava, indaguei ao vendeiro: "novena ou festa de que Santo está acontecendo na cidade"?

- o sinhô se engana; a festança é em sua menage. Tava sumido...

- num sabia que Eu era tão amado e querido na cidade.

- muito, muito. Amizade num tem preço e o sinhô é quase...

- quase, como assim?

- uai, quase...!

- continuo sem entender "o quase".

Fui logo arrematando a conversa: "do jeito que fui recebido, considero que sou mais que amigo, amissíssimo de todos. Durante esse tempo que estive fora, quem aqui pensou que Eu tivesse morrido por Covid"?

- cruz credo! Nem pensa uma coisa dessa!!

- então, tá vendo; são meus amigos. Que quase, o quê? Agora, para selar nossa amizade, quem pode me emprestar uns 100 pilas para comprar umas coisinhas para recomeçar a vida, por aqui?

- Deus me livre! - rosnou um deles.

- viu, entendeu agora?

- continuo sem entender por que não sou considerado amigo pelos meus amigos; mas entendo por que Eu quase tenho muitos amigos.

Traçado 4X4

Entra ano, sai ano e ainda não descobri o que represento pra Eles: se sou amigo do peito, colega de boteco e churrascada aos finais de semana ou utilitário para toda obra.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 10/01/2021
Reeditado em 10/01/2021
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