Coisas Que Só Acontecem Comigo - XVII (Maria Mota)
Corríamos no ano de 1972 possivelmente, quando fui trabalhar na construção da BR-316 em Santa Inês do Maranhão, no Vale do Mearim. Com essa enorme dimensão territorial, cada vez que penetramos num outro Estado brasuca, notamos uma grande variação de sotaque, trejeitos culturais, culinária e salve-se quem puder!
Em alguns Estados brasileiros, uma lâmpada vermelha à noite na porta de uma casa, pode indicar casa de diversão, inferninho. Em bom “piauiês” e com licença da palavra: puteiro. No Maranhão não é nada disso, mas sim, ponto de venda de “panelada”. Panelada é uma comida dos deuses. Com certeza, se Jesus de Nazaré fosse em carne e ossos ao Piauí, Ele até poderia comer peixes do Parnaíba, mas não sairia de lá sem comer uma boa panelada e ainda sairia lambendo os bigodes. Panelada, nada mais é que vísceras bovinas cozidas e em bom “piauiês”: tripas de boi!
Certa noite foi comer uma panelada e me indicaram a casa de Maria Mota (essa já deve ter batido a caçuleta), a melhor panelada da região... Ela veio me atender e já pedi de cara uma cerveja para ir abrindo o apetite. Uma... duas... três... quatro e nada de panelada, pareceu-me que tinham ido a procura do vaqueiro pra pegar o boi. Eu já tinha bebido muito além do que minha bexiga aguentava e que meu cérebro e corrente sanguínea permitiam. Escorri a água do joelho pelo menos uma vez, quando na volta do WC quase tive um AVC. O susto não fora desse mundo! Como numa dessas pegadinhas de mal gosto, dei-me conta que estava em sentido estrito, no sentido lato e no sentido amplo, literalmente dentro de uma casa funerária. Só que as pegadinhas são invenções recentes. Como poderia me ter ocorrido aquilo? Eu não saberia responder. Fiquei não apenas atarantado como tremendo de medo. Logo eu que sempre tive medo de alma penada. A mesa com as garrafas vazias estavam lá e muitos “paletós de madeiras” encostados nas paredes que circundavam a mesa. Pra mim o cenário era aterrador. Quase meia noite e eu era o único freguês na casa mal assombrada. Somente me dei conta disso, porque uma lufada de vento mais forte que entrara de casa a dento, fechara violentamente uma das tampas de um caixão a minha frente. Ataúde todo negro com fundo roxo, como a me fitar atravessado. Eu estava pálido, plantado sobre meus próprios calcanhares, para salvar minha alma de um enfarto eis que dona Maria Mota chaga com a panelada e colocando-a à mesa, perguntou-me se queria mais uma geladíssima, para o que respondi negativamente maneando a cabeça.
A panelada se estava no capricho não sei dizer. Comi o tempo todo de cabeça baixa, rezando para todos os santos que eu ouvi falar, para que comessem comigo e eu pudesse sair daquele cemitério. Terminei às pressas, lembro-me ter pagado com uma nota de Cr$ 10,00 (dez cruzeiros) dispensei o troco, por medo de na falta desse, ela me oferecesse velas.
Eu morava numa casa de hóspedes da empresa com mais quatro colegas. Quando lhes falei do sinistro, eles se mataram de tanto rir e eu tentando entender o motivo de tanta graça....
PS.
Maria Mota era talvez um caso único em todas as galáxias de uma mulher que exercia ofício de marcenaria funerária. Quando adentrei ao pequeno restaurante os caixões já estavam lá, não notei por ter um livro à mão e o lia atentamente enquando bebias as cervejas. Por aquele tempo, ainda não existiam esses ataúdes de madeira de lei, polidos, acolchoados com seda chinesa, escudo e cores do time de futebol preferido. Com ar refrigerado, wi fi e tv a cores, de hoje, dos quais os preços estão pela hora da morte. Eram esquifes artesanais, feitos de pinho, batidos ao martelo e pregos, sempre nas cores pretas e florões de alumínio para adultos e brancos com anjinhos dourados para criança e moças virgens. Maria Mota fabricava-os no quintal e os expunha na sala da casa que era uma mistura de domicílio, funerária e restaurante. Todos na cidade sabiam disso, menos o paspalho que lhes escreve.