CARNE SECA DESFIADA ACEBOLADA OU "YO NO SOY MARINERO NEN CAPITÁN"
Não faço a mínima idéia de como você foi acabar embarcando nessa caravela quinhentista. Nem o que o levou a fazer isso. Mas posso adiantar-lhe que entrou numa gelada.
Para quem ama viajar em grandes transatlânticos turísticos vai ser uma surpresa perceber que essa pequena embarcação não dispõe de cabinas porque elas não foram ainda inventadas e, as únicas pessoas que contam com espaço reservado são os clérigos e o capitão. Todos os demais passageiros ajeitam-se em qualquer lugar sob os azares do sol e da chuva.
Acredite que vai ser duro achar um lugar seco. Sem contar o batalhão de ratos, baratas e piolhos a enfrentar, que por aqui nunca ninguém primou pela higiene.
Você também logo irá perceber que esqueceram de construir os sanitários e, as necessidades podem ser feitas em qualquer lugar. Muitos, especialmente os marinheiros, costumam esvaziar seus intestinos nos porões, deixando-os com um cheiro insuportável e transformando-os num viveiro de toda sorte de parasitas.
Da mesma forma se sentir enjôos - e essa danada de caravela mais parece carrinho de montanha russa - poderá vomitar onde estiver, como fazem todos seus companheiros de viagem. Não se preocupe que ninguém liga.
Você igualmente não terá a chance de servir-se de seis lautas refeições diárias. A alimentação, como sabe, sempre foi o grande problema nessas viagens marítimas e é bastante escassa.
Por isso não faça cara feia ao receber sua ração que se resumirá a carne seca e salgada, peixe, biscoitos endurecidos e um pouco de farinha.
Se você for um figurão muito influente poderá contar também com um pouco de mel, arroz, cebolas, alhos, toucinho salgado e até azeite.
Além disso terá de contentar-se, todos os dias, com pouco menos de litro e meio de água salobra e malcheirosa e, o mesmo volume de vinho. Este último, acredite, não tem safra definida e sua procedência e qualidade estão para ser estudados.
Prepare-se para viver nesse requintado ambiente por alguns meses. Sem esquecer que as estatísticas referem que apenas quarenta por cento das embarcações retornam ao porto de origem. O resto naufraga durante a viagem.
E, as que voltam, perderam no caminho mais da metade dos seus tripulantes e passageiros, dizimados por doenças de todo tipo.
De forma que se você começar a sangrar sem motivo aparente, especialmente nas gengivas a ponto de perder os dentes e, sua boca transformar-se numa gangrena fedida, não perca tempo em procurar um especialista. Porque seu diagnóstico é fácil: escorbuto.
Mas vejamos porque esta história começou. Além da sua vontade em viajar foi porque tocamos no assunto da carne seca.
Não o aconselho a experimentar essa que recebeu. Esse forte odor de carne podre que dela se desprende é natural pois não foi adequadamente preparada. Mas qual o problema? O pior que sua ingestão poderá provocar será um forte descontrole intestinal. Mas esse fato é normal e corriqueiro e intoxicação alimentar nunca foi doença.
Não será, todavia, por esse motivo, que quererá, no futuro, deixar de apreciar essa estupenda iguaria.
Ainda que não seja a hora mais oportuna, porque sei que problemas de maior magnitude o afligem neste momento, permita-me dar-lhe uma delicada, saborosa e simples receita de carne seca.
Procure o encarregado da dispensa e use toda sua verve, inteligência e poder de convencimento para conseguir um bom pedaço de carne, se possível conservado, preferentemente sem vermes e com pouca gordura. E, deixe-a de molho por algumas horas, substituindo, por algumas vezes a água que a recobre. Use se tiver a doce. Caso contrário sirva-se da salgada mesmo. Nunca experimentei mas ouvi dizer que também dá certo.
Depois cozinhe-a em panela de pressão até ficar bem macia. Algo em torno de uma hora aproximadamente. Como você não dispõe desse utensílio culinário moderno, coza-a em panela comum pelo tempo necessário para amolecê-la.
Deixe-a esfriar e retire todas as pelancas brancas, deixando despontar apenas a carne totalmente limpa em seu magnífico colorido avermelhado.
E, agora, o grande segredo!
Examine sem pressa, pedaço por pedaço, para onde se dirigem os seus veios. E, com uma faca bem afiada, destrua-os fazendo cortes perpendiculares à tessitura que eles formam.
Obtenha minúsculos bocados a compor algo como uma grosseira e granulosa farofa. Reserve. Em lugar seguro, que tem muita gente neste navio morrendo de fome. E, quando digo morrendo, não é força de expressão.
Consiga agora um escaler de cebolas. Exagero. Algo em torno da metade do volume da carne já desfiada. Será fácil encontrá-las pois os navios sempre as carregam em abundância. Descasque e corte-as em finíssimas fatias.
Frite-as em manteiga de boa qualidade. Se não a encontrar ou se ela estiver rançosa use toucinho mesmo que fica igualmente bom. Junte a carne, sinta o tempero e mexa com cuidado para que o conjunto não grude no fundo da panela.
Prepare-se para saboreá-la. Procure um lugar bem sossegado. Procure limpá-lo de detritos e imundícies, lavando-o com bastante água do mar que essa nunca faltou. Relaxe e prepare-se para sentir uma grande diferença de tudo que você conhece em matéria de carne seca. Aquela a sua frente perdeu completamente aquela conhecida rigidez e transformou-se em algo macio, delicado e excepcionalmente saboroso.
Faça-a acompanhar de arroz, feijão, polenta, fritas, farofa ou o que tiver a disposição. Penso sobressaia altaneira até mesmo com esse pedaço de biscoito embolorado e semi-roído que lhe deram.
Agora, para finalizar, aceite um conselho. Não sou de me intrometer na vida alheia. Mas, se fosse você, ia correndo convidar o capitão!
Claro, procuraria barganhar. Um prato cheio dessa divina carne seca que você acabou de preparar em troca de uma rapidíssima parada em terra firme. Ainda que numa ilha deserta.