BOTTARGA
Admito que já conheci muitas mulheres feias. Mas a Célia ganhava de todas.
Branca, baixa, cabelo espetado, nenhum atrativo na frente e igualmente nada atrás. Um rosto horrível, orelhas gigantes, pernas finas e levemente arqueadas. Decididamente a natureza não lhe contemplara fisicamente com qualquer atributo que lhe permitisse deixar descendentes.
Tais circunstâncias não estariam a merecer qualquer destaque. Admito que já tive oportunidade de conhecer espécimes femininos bem mal acabados mas dotados de cativante personalidade. A permitir fosse relegada para segundo plano toda carência física.
Mas no caso da Célia tal não acontecia. Era tímida, encabulada e não conseguia sequer manter uma conversa razoável. Poucas tentativas fiz mas posso afiançar que seria impossível estabelecer com ela qualquer diálogo. Não fora, seguramente, dotada de qualquer encanto.
Foi quando, às vésperas de um feriado prolongado, recebi dela o convite para comparecer a uma reunião em sua casa. Para degustar “bottargas”. – “Vá que você não irá se arrepender”, confidenciou.
Eu nunca soubera o que fossem. Também não pretendia desperdiçar a noite. Mas o destino acabou por mudar todos os meus planos e vi-me a tocar a campainha de sua porta.
Ela veio receber-me e, imediatamente percebi que algo nela mudara.
Seu apartamento contava com um grande número de pessoas alegres e comunicativas. Pude notar que todos eram verdadeiros “gourmets” e comida era o único assunto que se comentava ou discutia.
Minha anfitriã logo foi buscar a iguaria que prometera. Eram ovas de peixe. Grandes, como jamais vira, no formato de uma banana e de cor amarelo-ouro.
Com maestria cortou finas fatias de uma delas fazendo-as repousar em um pequeno prato. Temperou-as apenas com azeite de oliva oferecendo-me a experimentá-las com torradas.
De plano fui cativado pelo característico aroma de mar que exalavam. E, ao levá-las à boca pude sentir um sabor intenso, particularíssimo e inesquecível.
E ela pôs-se a explicar-me o que eram e como as conseguira. Com insuspeitado charme e desembaraço.
Contou-me que são originárias da Sardenha, região da Itália onde é abundante um peixe de nome “muggine’ (lê-se múdjne), semelhante a nossa tainha, que possui, ao contrário da maioria dos peixes, ovas de bom tamanho, inconfundíveis e de sabor delicado.
Como um verdadeiro perito, contou-me que foram os fenícios os primeiros a elaborá-las e, posteriormente os árabes as difundiram por todo o Mediterrâneo com o nome de “battarikh”. Descreveu-me detalhes da sua confecção, como a salga, a prensagem, a defumação e o longo período necessário para atingir esse estado de graça até ser degustada.
Soube relatar igualmente um sem número de receitas onde é empregada, desde a forma mais singela – aquela que eu me servia, apenas cortada em finíssimas lâminas e temperadas com azeite – até as mais elaboradas como a que fora eleita para o prato que se seguiria: “linguine alla bottarga”.
Disse também que é cara. Algo em torno de cem dólares o quilo.
Eu as provava concentrado, a saborear quase que constrangido aquela finíssima iguaria quando ela informou que poderia ceder-me algumas inteiras, se quisesse. Pois as que eu me encontrava degustando com tanto prazer haviam sido feitas por ela mesma. Sem qualquer equipamento especial e, no seu próprio apartamento.
Confesso que capitulei. E não descansei permanecendo ao lado daquela encantadora mulher até bem tarde da noite até que me desvendasse todos os segredos da sua elaboração.
Foi paciente esmerando-se em transmitir-me todos os detalhes.
Inicialmente é preciso adquirir ovas de tainha. Inteiras, com a película que as recobre intactas. Aquelas destinadas à exportação são as mais indicadas. São mais facilmente encontradas nos meses frios, época em que o peixe se reproduz.
Devem ser uniformemente dispostas em fileiras em um tablado levemente inclinado e temperadas com sal comum. Algo em torno de duas colheres de sopa por quilo. Coloca-se por cima delas um vidro firme que receberá um peso para que fiquem prensadas. Uma rede de filó para protegê-las dos insetos. E então levadas ao sol por alguns dias. Uma semana, talvez, a depender de sua freqüência e intensidade. As ovas irão desidratar-se por força do sal e do sol, adquirindo lentamente aquela maravilhosa cor dourada.
Prontas, conservam-se por bom tempo, inclusive fora da geladeira.
Não posso esconder que a noite foi inesquecível. A começar pelo divino aperitivo e terminando numa massa de sabor único e inigualável.
Mas, mais que tudo. A confirmação daquela absoluta e inescondível verdade de que a natureza jamais comete erros.
A Célia era uma prova.