O sábado perfeito
Graças a Deus, mais um fim de semana chegou e, pra minha surpresa, acordo com a casa vazia. O que terá acontecido? Ah! Quem se importa? Que maravilha! A primeira coisa que faço é tirar a roupa e andar pelado pela sala - velho sonho do macho moderno em reviver o paraíso na Terra -. Que beleza, ninguém! Como já cantou Humberto Gessinger uma vez: “... quando não houver mais ninguém, será um belo dia...”, acho que era isso que ele queria dizer. Toda a casa, todinha, só pra mim. Banheiro? Meu. Cozinha? Minha. Quarto da mamãe? Meu. Hahahaha! O que fazer primeiro? Hum, uma vitamina? Sim. Não. Antes vou ao banheiro, sentar no ‘trono’ com um gibi, meu joguinho de mão e, o melhor de tudo, sem precisar fechar a porta. Não, não. Primeiro vou ligar o som e colocar o bom e velho rock para ouvir, sim, isso mesmo, depois vou tomar uma ducha bem demorada. Ah! Isso sim é vida.
Dando prosseguimento ao cronograma, ligo o som e me dirijo ao banheiro, porém outro ruído vindo do ambiente externo me interrompe o trajeto: É minha vizinha de frente. ‘Singelamente’ ela impõe sua vertente, melodiosamente brega, mais alto que meu clássico Rock’n Roll. Sem problemas. Enrolo-me na toalha, chego até a janela da sala fechando-a e aumento mais um pouco o som. Pronto. Perfeito. Minha música preenche toda a casa. Com um leve sorriso de quem esta curtindo a música, reinicio meu ritual de ‘purificação’ andando em direção as ‘portas da esperança’, sábado maravilhoso. Epa! Espera aí, tem alguma coisa. Um zumbido estranho que vem do lado de fora. O que será isso? A mesma vizinha de antes. Sentindo-se triunfante e dominadora, estendeu mais ainda a poluição sonora que produzia, e começou a vomitar ferozmente, o que ela classificaria como veia artística e, com toda a força de seus pulmões, sua voz esganiçada num tétrico dueto desarmonioso com a música que tentava acompanhar. É brincadeira isso? Mas não vou deixar que essa louca ‘esquizofônica’ - essa eu inventei, eu acho - estrague o dia de todos do bairro. Vestido com a armadura de defesa dos fracos e oprimidos, e topando o papel que me coube nessa sociedade, escancaro a janela de supetão, a vizinha se assustou um pouco com a manobra, me recebe com um sorriso amarelado, respondo com um grau de superioridade e aumento o som para um nível acima da música dela. Ah! Quero ver se essa mistura de perna de saracura com cabeça de capacete de guarda imperial do Darth Vader pode comigo. Ela percebeu a minha provocação. Vejo-a balançar ferozmente o aparelho comedor de tapioca, dou de ombros e as costas. Acho que agora ela saberá qual o lugar que lhe pertence na casta social. Ah! Que vontade de fumar o ‘charuto da vitória’. Epa! O que é isso? Mas que disparate! -‘disparate’ é ótimo -, a saracura colocou as caixas de som na janela, aumentou ainda mais o volume, e ainda acoplou o microfone do karaoquê junto! Meu Deus, não há limites para crueldade humana? Mas tudo bem, não me dou por vencido. Acalmem-se pobres mortais, vosso vingador não esta abatido! Ato contínuo, também coloco minhas caixas de som na janela, aumento o som, vejo-a enfurecida e temerosa, mas espere, ainda não acabei, vou até o quarto, ela demonstra apreensão, reapareço com a minha guitarra na mão, e a levanto como um troféu. Acho que ela se descabelou vendo a iminente derrota se aproximando. Não, sem piedade. Não espero nem um minuto, meu CD do Metal já está na ‘agulha’, ligo a guitarra e começo o mais belo dos solos agudos de guitarras já tocados no universo. Ah! doce vitória! Ela, abatida, fecha a janela. Ouço ao longe estrondos de pancadas surdas. A inútil deve estar dando cabeçadas e mais cabeçadas na parede de ódio e vergonha. Sim, porque foi sumariamente humilhada com a vitória acachapante da superioridade étnica do meu super-mega-hiper-power som acústico. Em comemoração eu acompanho o Metal com o mais puro e altíssimo solo de guitarra.
Subitamente, minha porta é arrombada: uma multidão, tendo um gigantesco homem portando um machado à mão, se dirige em minha direção, fico paralisado de medo, vejo o ódio no olhar deles. Não acho que eles tenham vindo pra me agradecer por livrá-los da ‘saracura’ e seu som brega. Vejo-os vociferando brados de ordem - ou pelo menos imagino, porque o som ainda estava no mais alto volume-. O gigantesco e ameaçador homem do machado fica parado me encarando, como quem guarda o prisioneiro impedindo qualquer movimento de fuga. Enquanto isso, um zunido repentino toma conta do ambiente: alguém desligou o som. As pessoas saem uma a uma. O homem também sai, andando de costas com o olhar fixo em mim:
- Rapaz, ao menos você deveria colocar uma roupa! E veja se limpa essa urina aí do chão!
Além da porta arrombada, vou ter de explicar a minha mãe a sujeira no tapete.