EXTRAVIO de Encomenda
Divina foi prostituta, ladra e traficante em quase toda a sua vida. Qualquer esquina de rua era ponto de tráfico e chamadas para amores escandalosos. Era passar um macho, que ela levantava a barra do vestido ou saia, deixando à mostra o produto que tinha para oferecer e de bate-pronto fazia o convite: "Vamos fazer neném, amorzinho! Começa com um chamego bom e termina com os gemidos sem dor. O cabra chega durão e sai molinho, molinho. Bem preguiçoso. Venha conhecer a casinha do piu-piu"!
Porém, aposenta e na melhor idade, época de poucas perspectivas, momento oportuno para fazermos as retrospectivas de vida e dar como certa a passagem deste estágio para outro, o qual não se conhece, ela se envolveu com os trabalhos de filantropia. Praticar o amor incondicional ao próximo poderia salvar-lhe dos pecados que de vez em sempre, remoíam os seus sentimentos.
O primeiro deles foi assistir pacientes num hospital psiquiátrico. Lá realizava múltiplas tarefas, desde dar banho, até limpar os banheiros. Sempre ouvira dos amigos e assistentes, que quanto mais se envolvesse com o serviço, dedicando o maior número de horas, maior seria a limpeza e depuração dos atos praticados anteriormente. "Se é para salvar minha alma, trabalho 24 horas. Não quero ter dívidas para pagar do outro lador". Cada dia uma jornada árdua de trabalho e responsabilidades; o que fazia com maior presteza e fervor.
Com o cansaço batendo-lhe nas costas, chamou o responsável por suas contas e confiança, para fazer o fechamento das horas trabalhadas como voluntária e assim, saber se cobria os números de dias que passara no marginalismo. O doutor das causas justas somou as aberrações cometidas e o mesmo fez com as horas assistenciais, de modo que no final, o profissional disse: “Dona Divina, a senhora cometeu esse montante em atrocidades marginais”. E apresentou a contabilidade.
- Como auxílio, a senhora conseguiu um número significativo, que meticulosamente manipulados, conseguiu mandar para cima X de tijolos, Y de sacos de cimento; Z de areia; W de argamassa, etc. Entendeu?
- Que coisa mais estranha, essa de mandar material de construção lá para o segundo andar.
- Não que a senhora tenha jogado esses materiais para lá, é que traduzimos em objetos e materiais, os auxílios, as ajudas e trabalhos ofertados aos seus semelhantes. Apenas uma forma subjetiva de materializá-los, para confrontar com o que de mal fizestes; assim fica mais fácil contabilizar coisa contra coisa. Esclareci?
- Perfeito, doutor!
- Imagine que se a senhora quisesse morar no andar de cima num casebre humilde, o material enviado seria suficiente e ainda sobraria, certo montante. Como a senhora quer e merece morar num palácio, ou numa fortaleza com todas as mordomias, preferi que trabalhasse um tempo a mais, para poder angariar o que queres. Material é o que não falta. Imagino quanto trabalhou no voluntariado, ajudando próximo, para mandar todo esse material para o andar de cima.
- Foi com muito, mas muito prazer, que fiz os auxílios ao meu, (ao nosso irmão, por assim dizer) doutor! Posso desde já, tomar a decisão que mais me agrada?
- Sim, claro! Como disse: material é o que não falta para a construção. Quando quiseres ir, procure pelo responsável do almoxarife que será bem recebida e encaminhada aos seus definitivos aposentos. Vou encaminhar o seu pedido, para agilizar a sua chegada no jardim do Éden, tudo bem?
- Sim.
Pegou a contabilidade apresentada em mãos, pagou os honorários do profissional e partiu. Cansada de tanto trabalho, juntou algumas coisas e disse adeus aos parentes, amigos e familiares. Os bens forma doados para as instituições, as quais, prestou os relevantes trabalhos de voluntária. A comoção foi generalizada: uns choravam, esperneavam e gritavam o nome dela. Outros, desejam-lhe que fosse tão próspera quanto fora aqui na Terra; principalmente nesses derradeiros anos. Tristeza geral! “Divina, leve-me com você. Também quero ir”. “Meu Deus, o que será de nós, sem essa mulher”. “A madre Tereza de Calcutá, não chega nem aos pés da senhora”. “Torcerei pela sua canonização, santa Divina”!
Acenou o adeus e subiu para o andar de cima. Procurou o chefe do almoxarife e entregou-lhe a contabilidade fiscal. Este verificou o fichário e realmente o nome de Divina constava na lista dos que deveriam chegar naquela data. Deu baixa na documentação e em seguida, passou-a para um senhor que estava ao lado; que disse secamente: “Vamos”.
Divina o seguiu toda feliz, por saber que com ajuda do profissional das causas justas, tudo dera certo. "Foi Deus que preparou o palacete onde vou morar, para mim".
Chegou ao local, que daquele instante em diante seria seu; somente seu. Definitivamente seu.
- Ué, não houve engano, não senhor! Mandei para cá muitos tijolos, sacos de cimento, areia, flores, pisos, argamassa, etc; e o que vejo é isso.
- Quem fez a contabilidade minha senhora?
- Meu profissional de confiança, lógico!
- Ele disse quem apara o material e objetos, aqui em cima? Enfim, quem ele representa na Terra? De quem ele é procurador? Ande logo e não mostre resistência!
- Fodeu! Tô frita. O castelo caiu.
- Como caiu, se nem chegou a ser colocado em pé?!