A BARATA

A BARATA

Às 14:30 de uma terça-feira, o saguão de entrada do Fórum João Mendes Júnior fervilhava de gente, misturando-se advogados, partes de processo, funcionários, faxineiros, seguranças, etc., e dentro desse variado universo de pessoas, incluía-se a pessoa do Dr. Bezerra, ou simplesmente Bezerra, como ele gostava de ser tratado e tanto é assim que quando alguém o tratava de doutor, ou senhor, ele, brincando, costumava dizer:

- Na minha certidão de nascimento, antes do Heitor – esse era o seu nome – meu pai não colocou nada. Nem doutor, nem senhor e como eu acho o Heitor simplesmente horrível, agradeceria se o amigo me tratasse por Bezerra, apenas Bezerra.

Tem aproximadamente uns 65 anos de idade, é alto, forte – para não dizer meio gordo – costuma cultivar uma bem tratada barba, já bastante grisalha devido à sua idade e é completamente calvo. Muito alegre e brincalhão, quando alguém se referia à sua calvície, respondia sorridente que, sem saber por que motivo, o seu cabelo havia descido do topo da cabeça para sua face, mas ele continuava aguardando ansiosamente que o processo inverso ocorresse a qualquer momento.

Naquela terça-feira estava, pois o Bezerra no saguão do Fórum João Mendes Júnior, aguardando na fila o elevador que o levaria até o 22º andar, onde se localizam as varas dos registros públicos. Ia examinar o andamento de uma ação de Usucapião de uma senhora pobre, que estava patrocinando a pedido de sua mulher.

São cerca de dezesseis elevadores no fórum para servir 22 andares, de forma que cada elevador atende a um determinado número de andares já que dois deles atendem, com exclusividade, os juízes e os membros do Ministério Público. Um privilégio num país onde a Constituição Federal diz que todos são iguais perante a lei. Mas isso é outro assunto.

Mas, voltando ao Bezerra, o elevador que ele iria usar, por exemplo, servia ao 19º e ao 22º andares e tem dias em que a fila é enorme, como era o caso daquele dia. Assim, como na primeira viagem do elevador depois de entrar na fila não lhe coube, Bezerra ficou em primeiro lugar para subir na próxima viagem.

Depois de uma longa e até cansativa espera, o elevador chegou, a porta se abriu e ele reparou que veio abarrotado de gente. Tão logo todos acabaram de descer Bezerra entrou e foi lá para o fundo – já que iria descer no último andar – encostou-se na parede e aguardou encher para poder subir. Dizer que o elevador estava cheio seria eufemismo, já que o mesmo estava completamente lotado. Como diria o vulgo: Estava saindo gente pelo ladrão. Se a capacidade do elevador era de 16 pessoas, devia ter ali dentro, bem umas 18 a 19 pessoas, tudo com a condescendência da ascensorista a quem competia dizer que já estava lotado. Mas essa não estava nem ai. Cabeça baixa fazendo palavras cruzadas, nem se preocupava se o elevador estava cheio ou se ainda cabia mais alguém. Resumia-se a apertar os botões dos andares onde deveria parar e o de fechar a porta para prosseguir viagem.

Fechada a porta, com alguma dificuldade, diga-se, depois de apertadas as teclas do 19º e do 22º andares pela ascensorista, iniciou-se a longa viagem.

Quando o mostrador eletrônico indicava estar o elevador no 2º andar, um garoto que poderia ter entre 8 a 10 anos, apertado lá embaixo e seguro pela mão da mãe, olhou para cima, puxou a saia desta e disse alto e bom som para que todos ouvissem:

- Mamãe! Tem uma barata na parede ali em cima.

- Pára de graça menino, ralhou a mãe do pimpolho, tentando ignorar o que havia ouvido.

No entanto, alguns ouvidos mais atentos, levaram a sério a observação do guri, olharam na direção indicada pelo petiz e constataram a veracidade do que ele dizia.

Lá estava ela, marrom avermelhada brilhante, parada apenas com suas duas antenas movendo-se atentas ao que se passava ao seu redor, vez por outra dando passos cautelosos como convém a quem sabe que a sua presença não esta agradando.

Ouviram-se as primeiras lamurias.

- Ai meu Deus, lamentou-se uma mulher que estava mais a frente próxima à porta.

- Minha Nossa Senhora, implorou uma outra toda elegante e sofisticada que só poderia ser advogada.

- Meu Santo Antônio, socorrei-me, implorou uma terceira.

Toda a corte celestial estava sendo chamada para combater uma simples baratinha.

Gritinhos começaram a se ouvir, alguns denotando até um início de histerismo.

Uma mulher que somente após ela dizer que estava grávida é que as pessoas notaram – tão pequena era a sua barriga – ameaçou dar à luz ali mesmo naquele local se aquela barata levantasse vôo.

Bezerra permanecia lá nos fundos do elevador, pálido, cara de apavorado, mas portando-se bravamente sem emitir nenhum som, por mínimo que fosse. Seus olhos, entretanto não descansavam um segundo. Mexiam-se de um lado para o outro, hora olhando para a barata, hora olhando o marcador de andares do elevador. Constatou a certo momento que já estavam no 6º andar, portanto só faltavam treze andares para as portas se abrirem no 19º andar.

A barata permanecia parada, apenas movimentando suas antenas, como se estivesse saboreando aquele momento de angústia e suspense que estava causando naquelas pobres pessoas.

De repente – Bezerra constatou que estavam no 8º andar – alguém sugeriu à ascensorista que parasse no primeiro andar que desse, obtendo como resposta que o elevador era programado para somente parar no 19º e no 22º andares.

Bezerra lá atrás, que, por ser freqüentador assíduo daquele Fórum já sabia disso, observava, agora já suando frio, que estavam passando pelo 10º andar e a barata permanecia inerte, não dando provas de querer ir adiante. Somente mais nove andares, pensou ele ansioso e, intimamente chegou até a elogiar a boa velocidade desenvolvida pelo elevador.

De repente, o terrível pirralho deu seu parecer a respeito do inseto que teimava em permanecer lá em cima à vista de todos, sem se preocupar em informar qual atitude iria tomar em seguida.

- Mamãe essa é daquelas que voam que tem lá no apartamento da praia, comentou o fedelho que já havia percebido o desespero que começava a tomar conta das pessoas, inclusive sua mãe e, intimamente, vibrava com isso.

Aquelas palavras serviram de sinal de alerta para que o mulherio desandasse a gritar e se movimentar, pedindo socorro e fazendo promessas, até para um tal de São Rui, de quem se dizia devota e que ninguém nunca havia ouvido falar, quanto mais que pudesse socorrer aqueles infelizes passageiros, naquele momento de angústia e desespero.

Uma senhora gorda e suarenta que ocupava o lugar de duas pessoas e que, inclusive, era o principal motivo daquele aperto em que todos estavam, virando o pescoço para trás, onde estava a senhora com o garoto, desabafou:

- Cala a boca garoto. Afinal, quem é você para entender tanto assim de baratas? Para conhecer tão bem este repugnante inseto?

Bezerra constatou a essa altura que ele era o mais alto dentro do elevador. Dai deduziu que se a barata levantasse vôo, o primeiro campo de pouso que encontraria seria exatamente a sua careca.

Procurou se abaixar um pouco, mas isso era impossível diante da quantidade de gente que havia ali dentro.

O elevador estava cheio demais e ele achava-se espremido entre a parede do fundo e uma senhora que havia se postado a sua frente. Ela era baixinha, mas tinha uma bunda enorme, o que se até então estava sendo confortável para ele, agora se tornava um estorvo, pois tolhia os movimentos dele da cintura para baixo, impedindo-o de abaixar-se.

Passavam agora pelo 15º andar e de repente, o elevador deu um tranco e parou. Parou, possivelmente, entre o 15º e o 16º e o que era pior: Além de parar, também se apagaram as luzes.

- Acho que vou desmaiar, disse uma coroa toda emperiquitada carregando alguns processos nos braços e que pelo nariz empinado e pelo trajar via-se que só poderia ser advogada.

Bezerra sentiu algo estranho escorrendo-lhe pelas pernas e logo pensou no pior: Meu Deus me mijei todo. Que vergonha vou passar quando o elevador parar.

Como que por milagre fez-se silêncio durante uns breves segundos que foi quebrado pelo terrível moleque.

- Mamãe, estou ouvindo o barulho de asas batendo, acho que a barata levantou vôo.

- Cala boca menino, gritou meio histérica a sua mãe. Você só abre a boca para dar essas notícias ruins.

A moça ao lado de Bezerra, que até então havia se mantido quieta e calada, começou a chorar convulsivamente, quando então se ouviu a voz da ascensorista que, mostrando ser entendida no assunto, tentava impor uma certa ordem no ambiente.

- Que voando coisa nenhuma. No escuro ela não enxerga nada, então como vai voar. Ela é barata, mas não é louca.

A voz do garoto fez-se ouvir novamente, agora aparentando uma confiança fora do comum.

- Barata não tem olhos. Ela se orienta pelas antenas que funcionam como se fosse um radar.

- O menino tem razão, ponderou Bezerra já a ponto de ter um piriri e complementou: A barata é um inseto noturno e já repararam que ela só anda junto a parede e com as antenas lhe orientando os passos?

- Cala boca seu idiota, esbravejou um cidadão que estava impossibilitado de olhar para a barata, já que estava com a cara colada na porta. Em vez de ficar ai dizendo bobagem, como homem, trata de matar o bicho, não é mesmo?

Como se houvessem combinado, todos os presentes responderam quase que em uníssono.

- É isso mesmo seu barbudo.

Bezerra sentiu-se ofendido e procurou dar uma de valente.

- Quem está mais perto dela é o amigo aí na frente, portanto levante a mão e ataque-a.

- É verdade, disseram algumas vozes concordando com Bezerra.

Quando se calaram, a voz do homem lá da frente provocou Bezerra.

- Ou será que você não é homem pra matar uma simples baratinha?

A discussão entre Bezerra e o homem com a cara achatada contra a porta ia continuar quando se ouviu uma voz pelo alto falante do elevador.

- Senhores passageiros, queiram por gentileza permanecer calmos, pois dentro de poucos minutos a força estará restabelecida e tudo voltará ao normal.

- Permanecer calmo? É porque não é sua mãe que está aqui dentro junto com esta barata nojenta, bradou um moleque que transportava uma pilha de processos, e teve, de imediato, o seu grave pronunciamento totalmente endossado pela mulher da bunda grande que estava na frente de Bezerra.

- Não xinga a barata de nojenta senão ela ouve e aí se vinga de todas nós, disse uma branquela cujos óculos pareciam mais um fundo de garrafa de tão grossas que eram as lentes.

A moça ao lado de Bezerra agarrou no seu braço e agora não mais chorava, mas sim soluçava de tanto nervosismo.

- Olha aí mãe – era o pimpolho especialista em baratas que trazia novas e tristes informações. Ouve bem o barulho das asas batendo. Ela está voando e vai pousar em algum lugar, sentenciou o safadinho.

A mulher da bundona desmaiou e lançou todo o seu peso sobre o pobre do Bezerra, que a esta altura, estava com a roupa encharcada de suor, e não sabia mais o que fazer.

- Olha ela esta aqui, berrou a mocinha junto a ele com voz de horror.

No mesmo instante a mulher de óculos fundo de garrafa falou com uma voz chorosa.

- Estou sentindo que ela esta andando no meu vestido aqui no meu peito.

Novamente ouviu-se aquela voz vinda lá de baixo se manifestando.

- Se ela está aí então não é uma barata é um barato. Oba!.

Essa observação lhe valeu uma sonora e corretiva bolacha no pé do ouvido, seguida de uma admoestação de sua genitora.

- Se você falar alguma bobagem novamente menino você vai ver quando chegarmos em casa.

Agora era a advogada que carregava os processos quem sentiu a presença do indesejável inseto sobre sua cabeça e de imediato largou os processos que começaram a escorregar entre os corpos apertados em direção ao chão. Em seguida conseguiu levantar os braços e levando as mãos até a cabeça, começou a despentear-se freneticamente, tentando enxotar a barata de sua cabeça.

Os processos caíram sobre os pés de uma velhinha baixinha que até então não havia dado um pio sequer.

Agora, com aquele peso sobre seus pés cansados ela reclamou.

- Olha aí onde joga essas pastas mocinha, pois estão machucando meus pés.

A confusão era total, cada um reclamando mais do que o outro e achando que a barata estava sobre a sua pessoa.

De repente, da mesma maneira que se havia apagado a luz acendeu-se novamente e o elevador pôs-se finalmente em movimento.

Todos os olhares se dirigiram para o local onde a barata havia sido vista pela ultima vez antes das luzes se apagarem e constataram surpreendidos que ela não estava mais lá e se não estava mais lá, estaria onde?

Alguém gritou que ela estava no chão e todos começaram a saltitar como se isso fosse resolver alguma coisa.

Com esses pulos o elevador balançava todo, ameaçando parar novamente.

Bezerra que havia recuperado um pouco da sua calma, lembrou a todos, em altos brados que se não cessassem de pular o elevador poderia parar novamente.

- É verdade, disse a velhinha que continuava a se queixar dos processos a machucarem os seus pés.

- Vamos com calma pessoal, disse o moleque que carregava a pilha de processos. Já estamos no 18º andar.

A advogada que havia largado seus processos no chão em cima dos pés da velhinha continuava a passar as mãos pela cabeça freneticamente, nada adiantando o Bezerra lhe chamar a atenção de que a barata não estava ali.

Finalmente o elevador parou no 19º andar e antes da porta abrir, novamente o pimpolho confidenciou quase sussurrando para a mãe.

- Mamãe, a barata voltou para o mesmo lugar.

Todos olharam ansiosos e perceberam que ela estava saindo de dentro do forro do teto e caminhava calmamente para o mesmo lugar onde estivera antes.

A porta abriu-se no 19º andar e todos queriam sair de uma só vez.

O cidadão que estava com a cara exprimida contra a porta, foi o primeiro a ser empurrado para fora e agora procurava colocar o seu rosto no lugar novamente.

Já do lado de fora do elevador, livre daquele pesadelo, Bezerra constatou todo feliz que o que ele pensara ser mijo, não passava de suor que lhe escorrera pelas pernas devido ao nervosismo.

Em seguida, calado e cabisbaixo, dirigiu-se a escada e desceu dezenove andares deixando para examinar o processo de Usucapião em outro dia com mais calma.

Apenas ficaram dentro do elevador a mulher da bunda grande que Bezerra ao sair desesperadamente a largou para terminar de desabar no chão; a ascensorista que estava sentada com a cabeça pendendo para o lado, encostada no painel de controle, também desmaiada; os processos da advogada que permanecia no hall toda despenteada; um pé de sapato de mulher, uma bolsa e a barata.

Esta lá de cima, a tudo observava curiosa com toda aquela movimentação que havia causado e comentou consigo mesma.

- Que bando de gente covarde. Eu não faço mal a ninguém, não mordo ninguém e, no entanto todos têm medo de mim. E olhando para o menino que a havia descoberto, fechou a cara e comentou:

- Quanto a você, seu pestinha, estude melhor, pois eu tenho olhos e enxergo muito bem.

E, em seguida, encaminhou-se calmamente para dentro do forro do teto do elevador, onde tranqüilamente colocava seus ovos, gerando assim mais baratinhas.

Todavia, quando voltou para seu ninho, deu pela falta de uma outra barata que também ali residia e que era muito chegada a dar umas escapulidas de vez em quando.

Enquanto tudo isso ocorria, Bezerra descia calmamente as escadas do Fórum, ostentando nas costas uma bem nutrida barata que ali havia se aninhado e que o acompanharia durante muito tempo naquela tarde, até que, quando chegou no térreo, um colega apiedou-se dele e com todo cuidado e educação o informou:

- Caro colega, acredito que você não saiba, mas nas suas costas encontra-se vagando sem saber qual direção tomar, uma baita duma barata que seria...

O colega não pôde terminar a frase, pois Bezerra jazia desmaiado no chão do corredor.

S B Braga
Enviado por S B Braga em 15/08/2011
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