IL Vecchio e o Farmacêutico

Parte desta história (o velho italiano) foi inspirada na lembrança do primo e amigo, desde a infância, Benito Figueiró Onnis, e se passa, toda ela, numa pequena cidadezinha de Minas, nossa terrinha natal, nas entranhas do Vale do Jequitinhonha. Obrigado pela lembrança “Rapaz” (como chamávamos um ao outro, no florescer da adolescência, após um desentendimento em que ficamos “de mal”, não pronunciando os nossos nomes, mas sem dispensarmos o nosso regular convívio).

A sorveteria Suissa (isto mesmo, com dois esses), de um velho italiano, atarracado e normalmente de mau humor, localizava-se no mesmo prédio onde funcionava o cinema de um de seus filhos. Este prédio, num conjunto de mais três casas, de propriedade do mal humorado vecchio, e incluindo sua residência, situava-se na parte de cima da rua principal da cidade, em frente a um grande colégio de freiras franciscanas, onde havia um internato feminino.

A movimentação de gente que passava por aquele local, principalmente de estudantes, era intensa, mesmo porque, havia do outro lado da rua, à direita do colégio, a Farmácia do Povo, e, na esquina próxima, uma casa de peças de automóveis, um posto de gasolina, com uma oficina mecânica aos fundos, e uma paragem de paus-de-arara e de outros veículos que transportavam em suas carrocerias visitantes da área rural, que vinham à cidade trazendo seus parcos produtos para as feiras de sábado, para comprarem suprimentos ou à procura de atendimento médico, ou, simplesmente, a passeio.

Uma enérgica e simpática paraíba – mulher que manda em homem -, como se dizia ali, de nome Santa-de-Seu-Nô, oferecia na sua paragem uma hospedagem bem simples e muito barata, tendo como entrada uma vendinha de duas portas, onde se vendiam pratos feitos, pinga, biscoitos caseiros, leite, café, queijos, requeijão em fatias, e uma miscelânea de comidas preparadas pela bondosa, mas apoquentada Santa, que possuía um porte físico elevado pelo seu avantajado busto, o que lhe dava um ar superior.

Certos dias se ouvia um acordeon tocando animadamente naquele lugar, e a felicidade tomava conta daquela gente simples que por ali esperava a hora da partida, contagiando os corações dos que passavam por aquela esquina da alegria.

O velho italiano labutava com a sua salmoura e com um gerador de força que controlava nos fundos da sua sorveteria, uma vez que a energia elétrica da cidade, produzida por motor a diesel, era fornecida, naquela época de meados dos anos sessenta, somente das dezoito às vinte e duas horas. Isto, quando o motor não quebrava por longas semanas e até meses, deixando as moradias à luz do lampião e a iluminação pública à luz do luar, salpicada de estrelas e de pirilampos.

Três adolescentes, que perturbavam muito a cidade, atazanavam, como moscas varejeiras, o velho italiano, roubando-lhe balas no vidro sobre o balcão refrigerador, enquanto este se ausentava brevemente indo até os fundos do seu estabelecimento. Os garotos maldosos roubavam e corriam para fora da sorveteria, e, quando voltavam, estando o velho presente, dissimulavam suas ações, pensando enganar tal homem, que os encorajavam a entrar, ainda que desconfiados, com um largo sorriso artificial e sem som, recebendo-os com um inesperado arremesso de roletes de madeira retirados das bobinas de papel de embrulho, que soavam surdas nas costas e cabeças dos jovens em desabalada fuga.

Este velho e guerreiro homem, quando mais jovem, fora responsável por diversas construções na cidade, dentre igrejas e moradias. Certa ocasião, quando construía a igreja da matriz, um dos serventes de pedreiro que administrava, e que era chegado à bebedeira nas horas vagas e muitas vezes nas não vagas também, carregava uma lata de massa de cimento à cabeça e vendo a aproximação de alguns policiais, que sabidamente estavam indo prendê-lo, por ter surrado uma mulher na zona boêmia, foi socorrer-se junto ao italiano, dizendo que os policiais vinham buscá-lo, quando recebeu deste a resposta; - Vá filho, mas me deixa a lata .

Naquela época, uma boa parte dos moradores daquela cidade, criava, nos seus vastos quintais; galinhas, perus e porcos, que, geralmente, eram sacrificados para uso familiar aos domingos e nas datas festivas.

O velho Francesco, como de costume, abatera um leitão bem engordado para o Natal, e retirando-lhe as partes que assaria, fez com o restante lingüiças, fricassés e torresminhos em abundância, que não parava de comer, até acometer –se de uma congestão, o que o obrigou a pedir ao neto que fosse até a farmácia em frente à sua casa à busca de um digestivo.

O farmacêutico era daqueles homens que conversavam com voz troada e rasgada, sem qualquer comedimento ou repreensão, afinal as suas agulhas estavam ali afiadinhas e fervidas junto às seringas de variados tamanhos à procura de um braço em pânico. E, tanto mais em pânico, quando lhe contrariavam.

A farmácia vendia de tudo; desde ventiladores, bicicletas, rádios vitrolas à pilha e, em nova empreitada, até carro, um Chevete.

O farmacêutico era tarado pela beleza e pela voz da cantora Perla, que fazia soar aos ouvidos dos clientes, adoentados ou não, e de toda a vizinhança, em elevado volume de um toca-discos à venda, sob o som paralelo dos seus comentários troados.

Cá do seu quarto, o velho Chico, ao som de Perla, podia escutar o farmacêutico, em sonora concorrência, inquirir o seu neto sobre o mal do avô e recomendar, à viva-voz, o purgante Leroy, que retirou da prateleira, assoprou e entregou ao menino, após anotar o débito.

Em casa, prepararam o purgante para o velho italiano que, alguns minutos após bebê-lo, entrou em intensa trepidação, sudorese, palidez, resfriamento e uma diarréia que lhe escapava a esmo. Convencido de que era chegada a sua hora, gritou para a Perla e seu apaixonado farmacêutico: - Oh, Deus, este cientista maluco envenena a todos nós! E apagou, para ressuscitar no dia seguinte encharcado dos líquidos que dele exalaram em memória do saboroso leitão.

Di Amaral
Enviado por Di Amaral em 23/08/2008
Reeditado em 06/09/2011
Código do texto: T1142591
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.