O Defunto de Óculos Escuros

O velório estava lotado de amigos e de curiosos. Parentes mesmo não os tinha. Seus pais haviam falecido, não tinha tios e apenas uma irmã solteirona, como ele, que morrera de câncer de mama.

Todi, como o conheciam, era um playboy, um cara afortunado (?). Herdeiro de uma fortuna, teve que abandonar o curso de direito para cuidar dos negócios, que, na verdade, eram entregues à administração de empregados de confiança do seu falecido pai. Eram uma fazenda de café, uma de gado, um supermercado, um laticínio e muitos imóveis em algumas cidades. Por força das circunstâncias, ele tinha que freqüentar a sua cidadezinha natal, a pequena São Domingos, onde seria um dia sepultado ao lado dos familiares.

Todi odiava velórios, arrepiava-se todo quando via um defunto no caixão, talvez pelo trauma de ter perdido todos os seus parentes íntimos. Dizia que não suportava a palidez e a feição macerada do corpo, com aquelas mãos e rosto pálidos, com a musculatura do maxilar retraída flacidamente, engordando um rosto morto entre flores. Era insuportável para ele aquele cenário. Até o perfume das flores lhe causava asco. Dizia sentir nele o mau odor da podridão da morte e argumentava que usavam flores para mascarar os gases fétidos exalados do corpo em decomposição. Freqüentemente, ao passar por um velório, por obrigação social ou afetiva, perguntava a um ou outro amigo se não estavam sentindo um mau cheiro misturado ao perfume das flores.

Todi morreu de acidente aéreo, quando voava para sua cidadezinha. Ele mesmo pilotava o seu avião e, naquele dia, a sua inabilidade e a sua impaciência, tão comuns em filhos únicos, mimados e afortunados, como ele, foram castigadas pelos demônios da tempestade que, literalmente, serraram-lhe uma asa da aeronave, fazendo-a mergulhar como um bólido no lago de uma hidrelétrica bem próxima do seu destino.

Todi pedira aos amigos e aos empregados de confiança e aos afilhados, que, se morresse antes deles, não lhe deixassem parecer com os defuntos que tanto lhe causavam espécie. Que lhe preparassem o corpo como se fosse qualquer um dos presentes ao velório. Pedia isto, encarecidamente, sempre que freqüentava um funeral e condicionou tal pedido a compensações legadas em testamento.

--- E lá estava ele no caixão, um belíssimo defunto... Defunto? De óculos escuros, corado, com as bochechas levantadas em leve sorriso.

Comentava-se à boca pequena que muitos que por ali circulavam estavam mais mortos que ele naquele caixão.

Nota: O presente texto é uma sátira aos morto-vivos que frequentam funerais sem qualquer sentimento, por não terem o que fazer, ou, como abutres, por interesses suspeitos. Ressalte-se o interesse pela viúva(o), quando bela(o) e atraente. rsrsrs (com humor).

Di Amaral
Enviado por Di Amaral em 10/08/2008
Reeditado em 13/11/2010
Código do texto: T1121538
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