"A cultura Brasileira amanheceu mais orfã do que ontem". Att.: Inezita Barroso

São Paulo, 09-03-2015. São 4h e 21min. Para ser mais exato: 4h 21min 45s de uma segunda feira de nuvens cinzentas, lúgubres, carrancuda e chorosas; em contrapartida, de céu claro e Deus sorridente e lisonjeiro; afinal de contas, não são todos os dias que o Jardim do Éden recebe visitas ilustres, luzidias e beneméritas em seus aposentos. Por que de toda esta precisão de tempo e contexto literário? Para soprar, conclamar, vociferar, aos cultos, incultos e incautos, aos ouvintes e surdos, aos músicos e apreciadores, aos violeiros de São Paulo, do País e dos quatro cantos do mundo que Ignez Magdalena Aranha de Lima, a simplória Inezita Barroso faleceu. Dona de casa, Professora e Artista em potencial e abrangência, de uma suavidade e encantadora voz. Predicados e adjetivos, são o que não faltam para qualifica-la, mas citarei apenas um para sintetizar tamanha leveza e beleza interior: singeleza celestial.

Inezita, através da dor e sofrimento; da fala mansa, do cigarro de palha, do pedaço de angu encaroçado; do trabalho forçado e espontâneo; do genuinamente matuto, calçando botinas, com as barras da calça arregaçadas até a canela, falando arrastado o regionalismo; do homem sertanejo, puxador de enxada para lavrar a terra; com as mãos e pés calejados devido à lida diária, cuja finalidade, primeiramente é alimentar a prole e em seguida, alimentar o mundo; pelas suas palavras (palavras musicadas, obviamente) sentia-se prestigiado e distinto num país insólito com os seus antecessores, raízes e identidades. Desculpe-me Inezita, sem o seu tino, inspiração, presteza e humildade, enaltecendo a Natureza e o nativo, faço das minhas palavras, as suas:

Vida de matuto

Chuva!!

Do céu despenca a chuva,

Endoidece o telhado.

Na fornalha crepita a lenha em chamas,

Em cima da trempe borbulha o angu,

Do jirau desce o fio de picumã,

Sentada no banco da cozinha,

Com os olhos mareados,

A mãe amamenta o filho recém-nascido,

e com as mãos, cofia os cabelos de Nininha,

sua irmã.

Desolado no peitoral da janela,

Manoelzinho observa o horizonte.

Espera a chuva passar,

Para o sol voltar a brilhar.

E poder ver subir a fumaça da terra,

sentir o cheiro de relva molhada,

e com as barras da calça arregaçadas,

botar os pés no chão,

amassar o estrume das rezes,

trabalho que faz com zelo e apreço,

para nunca esquecer das carícias e dos queixumes da menina

que não vê há muitos meses.

Na boca noite,

Deusdete chega da roça.

Traz no embornal, umas espigas de milho,

A marmita suja e umas raízes de mandioca,

Que é para no dia seguinte,

A mulher ralar, espremer o suco,

Separar a massa para fazer o curau,

O beiju de farinha, a tapioca e o mingau.

Para alegrar o coração,

Sob a luz tênue e bruxuleante do candeeiro,

tira uns minutos para pontear a viola.

Enquanto faz isso com prazer,

Restaura a felicidade,

Manda a tristeza para longe,

Que às vezes, o amola.

Vida de matuto, é vida simples.

E resume-se numa mulher para amar,

Em meia dúzia de barrigudinhos para criar,

Em muitos cães campeiros,

Um alazão para montar,

uma viola caipira para pontear

e nas modas, as mágoas desabafar.

Pendurado na parede de barro da casa de taipa,

A cada tic-tac do relógio,

Pelos árduos encantos da vida: se apaixonar.

Vida de matuto é vida boa!!

Pois, todo dia transpira a Natureza,

E a presença de Deus, à cada segundo,

Faz os suspiros coração respirar.

Como pesquisadora e estudiosa, conhecia os problemas sociais brasileiros sem sair de sua cadeira (objeto que nos últimos anos à mantinha de sorrisos abertos no programa “Viola, minha Viola”), o que comparativamente, somente Deus conhece os corações dos sensíveis. Fisicamente, materialmente, ela se foi; e de um em um, Deus vai garimpado de volta ao reino, no aprisco do céu, esses personagens e protagonistas da música, que em vida mostraram notoriedade e presteza para com os povos; portanto, até que o próximo para lá se vá, o céu está em festa. A alegria é contagiante. Em comprovação, fiz o poema abaixo em homenagem ao Dominguinhos; mas neste exato momento, é transferido em sua totalidade à Rainha e Madrinha dos Violeiros.

Vá José!!

Vá para ser recebido pela horda de anjos

Tocando viola, sanfona, gaita e acordeom!

Vá José Domingos!!

Leve consigo o gibão, o chapéu de couro, a zabumba, o triângulo e as angústias de suas raízes. Vá ver as alpercatas dos pés cascudos dançando alegremente o forró pé de serra; que é a linguagem musical dos doutos que não necessitam de teorias e escolas.

Vá se juntar a Lampião, Patativa de Assaré, Mestre Vitalino e ao rei do Baião.

Pois, nos últimos tempos, dentre os comuns daqui da terra,

Fostes o deus da sanfona.

É chegado a hora: vá Dominguinhos!!

Vá receber o seu galardão,

Que é ser aplaudido pelo soberano Deus;

Presente, que poucos deuses da humildade merecem.

“Viola, minha Viola. Êta programa que eu gosto”. Inezita Barroso.

Os predicados e adjetivos passam, mas os substantivos, os feitos e as boas obras permanecem inalterados para sempre! É o que vale, prende e presta o homem na Terra e à terra. Quem dá mais? Salve, salve Madrinha!

Quer se conhecer um pouco mais: http://www.recantodasletras.com.br/autores/reali; esse é o caminho.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 09/03/2015
Reeditado em 18/03/2015
Código do texto: T5163374
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