SOBRE QUANTIDADES III
Escrevo este texto para a minha dezena de leitoras, que vem a este canto independente de minhas habilidades sociais – sim, o comentário ao texto alheio faz nesse universo o análogo dos chás, cafés, cartas, telefonemas, visitas, lembrançinhas com as quais se constroem, no mundo cada vez menos real, os relacionamentos.
Quiça eu tenha tempo e vontade e divertimento para visitar outros cantos e assim as leitoras desse escrito saírem da casa de dois dígitos para a centena... e por que deveria eu repetir para uma centena as palavras de um escritor que tem milhares de leitores? Porque talvez minhas leitoras não tenham feito esta leitura, e se o fizeram, vão adorar reler...
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À vida falta uma parte
-seria o lado de fora-
para que se visse passar
ao mesmo tempo que passa
e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta.
À vida falta uma porta.
(Ferreira Gullar - em "Versos de Entreter-se")
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Estes versos tão já conhecidos, estão lá na reportagem feita com o poeta pela veja – sim!!!!???, eu leio a veja, sinto-me constrangido em relevar isto, como nos constrange a descoberta de todas nossas faltas, ainda mais esta, que é quase uma hipocrisia, só se perdoa o fato de eu ser assim, um leitor, que quando vai ao banheiro lê qualquer pedaço de papel que ali esteja – quando menino eu lia fotonovela, capricho, bula de remédio, jornal d euma semana... hoje (esperem, vou lá olhar) além da edição 2288 da veja que trás a entrevista, tem a edição da vejinha de 5 de setembro, os nrs 252 e 255 da revista escola, uma edição especial de você s/a de abril de 2010, um encarte comercial da droga raia de julho, uma edição pocket de poesias da Florbela Espanca, um livro sobre Pragmática da Comunicação Humana, e um pocket de O Banquete, de Platão... tive de citar tudo isso para me redimir de ler este cancro da impressa brasileira, mas a maior redenção é este próprio texto, ou seja, achar nessas páginas tão cheias de manipulação, conservadorismo, jogos de poder, algo tão impactante, visceral e necessário quanto Ferreira Gullar.
Tenho por certo que o intuito da entrevista foi a de divulgar uma única frase do pensador: “O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produz a riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora. [...]O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas...”
Não estou aqui para falar sobre o homem José Ribamar Ferreira, sobre seus feitos, suas convicções e reviravoltas, apenas do poeta, de seu ofício, sua obra, e da poesia em si.
Transcrevo abaixo as duas últimas perguntas feitas ao poeta, e suas, desde já antológicas, respostas:
- Como é seu método para fazer poesia?
“Já fiquei doze anos sem publicar um livro. Meu último saiu há onze anos. Poesia não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que não sabia. Só escrevo assim. Estou na praia, lembro do meu filho que morreu. Ele via aquele mar, aquela paisagem. Hoje estou vendo por ele. Aí começo um poema… Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos. Não dá para escrever um poema sobre qualquer coisa.
O mundo aparentemente está explicado, mas não está. Viver em um mundo sem explicação alguma ia deixar todo mundo louco. Mas nenhuma explicação explica tudo, nem poderia. Então de vez em quando o não explicado se revela, e é isso que faz nascer a poesia. Só aquilo que não se sabe pode ser poesia.”
- A idade é uma aliada ou uma inimiga do poeta?
“Com o avanço da idade, diminuem a vontade e a inspiração. A gente passa a se espantar menos. Tem poeta que não se espanta mais, mas insiste em continuar escrevendo, não quer se dar por vencido. Então ele começa a escrever bobagens ou coisas sem a mesma qualidade das que produzia antes. Saber fazer ele sabe, mas é só técnica, falta alguma coisa. Não se faz poesia a frio. Isso não vai acontecer comigo. Sem o espanto, eu não faço.
Escrever só para fazer de conta, não faço. Eu vou morrer. O poeta que tem dentro de mim também. Tudo acaba um dia. Quando o poeta dentro de mim morrer, não escrevo mais. Não vou forçar a barra. Isso não vai acontecer. Toda vez que publico um livro, a sensação que tenho é de que aquele é o definitivo. Escrever um poema para mim é uma grande felicidade. Se não acontecer, não aconteceu.”
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E por que Quantidades III, se meus textos I e II são tão existenciais? É apenas para ressaltar o olhar poético que temos eu e minha dezena ou centena de leitoras, os milhares do próprio Ferreira, porém jamais os milhões que leem esta revista... destes não se espera, porque não há, poesia, só a lembrança do gosto ocre de toda a tirania, inclusive aquela exercida por infinitas tiragens de uma falsa liberdade de expressão.
Para não terminar assim, voltemos ao poeta, e um de seus poemas, que inclusive foi magistralmente musicado por Raimundo Fagner:
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Cantiga para não morrer
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.