ENSAIO SOBRE O PRELÚDIO

ENSAIO SOBRE O PRELÚDIO

Certa tarde estava eu em casa, já com o vício que mantenho até hoje, ainda agora, enquanto escrevo vivencio a situação: estar a fazer algo, com a TV ligada, em geral sem som, e por não estar com o olhar focado na tela, ficam as cores tagarelando em minha visão periférica, até que um tom, um movimento, um intervalo me chama a atenção, e eu miro diretamente a programação. Nesta tarde o que me alertou foi a vinheta feita justamente para alertar: “extra extra, o plantão da globo informa: morre em São Paulo o cantor baiano Raul Seixas.” Um baque, um abismo, uma dor, é real, a fatalidade fatal, um breve prelúdio para o eterno fim.

Foi isto que mudou... já não há mais prelúdios, o jornaleiro que gritava na esquina, as damas nas janelas, a voz do rádio, o burburinho das ruas, nada mais, hoje pelo celular conectei-me à internet para baixar um e-mail e lá estava, nua e crua como a própria morte a foto do Saramago e a manchete de seu passamento. Usei um eufemismo coloquial que ele jamais usaria (o eufemismo, não o coloquial), diria mesmo “o anúncio de sua morte”, quem morre não passa, finda, e se me pedirem a degradada licença poética, então é que não passa mesmo, já criei, para minha avó, este paradoxo: quanto mais passa mais fica.

E a dor, o abismo, o baque? Não há, é como receber o impacto de uma explosão, fica uma vibração intensa, tudo é vermelho e zumbido, não há pensamentos não há sentimentos não há ação, até a sensação passar e você se descobrir mutilado, como eu certa vez me descobri, fisicamente, e muitas outras vezes descubro, emocionalmente. Saramago não mais irá desdenhar das crenças, dos charlatanismos ideológicos, não pensará de novo no homem, nem ficará triste por pensar no homem, nem feliz nem gigante nem humano, ele já fez, ainda ontem escrevi que só o passado é eterno, por isto não passa, por isto hoje começou a eternidade do escritor.

A morte é necessária, constatou o próprio Saramago em As Intermitências da Morte, só acho que ela deveria ser seletiva, morressem cedo, ou, melhor ainda, fossem natimortos o tal do Ivan, do Stalin, do Ide Amim - para não ficar só nos russos - , do Sadam, dos Bush, toda a dinastia, que não haveria, e ficassem tempos perenes o Sócrates, o Dante, o Camões, o Pessoa, o Machado, o Carlos, o Quintana, o Saramago.... que mundo bom de viver seria, meu deus que não é meu, pois como Saramago sou ateu. Não fosse, e eu pensaria nele agora como na cena de um filme que vi nas condições descritas no primeiro parágrafo, por isto não sei o nome do filme, ano, atores, nenhuma referência, apenas que havia um velho negro bluseiro (perdoem tanta redundância) que morreu e foi para o céu, e o céu dele era um bar de New Orleans onde se reuniam Collins, Reeding, Big Joe, Charley Patton, Dog Taylor, Lee Hooker, Jordam, Waters, caras assim, com um copo de bebida e muita música, para todo o sempre... imaginem o grupo de poetas acima, assim reunidos... é isto o que penso, o que sinto, todas as palavras e intenções deles explodindo em beleza e conhecimento em mim... minha mente e meu peito formam o céu e o inferno da poesia, e aqui antes transitava o Saramago, hoje ele tornou-se residente, por toda a minha eternidade.

em 07/01/2010, publiquei um texto chamado Caim, após a leitura do último livro... ainda está por aqui.