Para entender: Neda significa " a voz ". Neda foi uma jovem iraniana que morre covardemente nas mãos da milícia do Irã por pleitear em protesto pacifico direitos e liberdade as mulheres daquele país. Projetei o texto para um ensaio teatral.
Neda: Erguida e com as mãos sobre seu útero, expressão de dor e choro, diz: Mulher, mulher, sou mulher. Mulher por ter um útero no ventre, para encapar as pistolas e rifles da casta masculina que nos fez sub casta? Para enfiar suas armas que atiram sem decência e amor ao vento e ao ventre? Que preenchem meu espaço vago entre as pernas e no vai e vem do sexo mudo e surdo de toque e tato, retiram e estripam as vísceras de cada ínfimo sonho de amor e liberdade que tenho, que tinha.
Ergue o rosto que é iluminado parcialmente, seca uma lagrima e retoma seu monologo:
Eis aqui minha sina, entre tantas Marias, fartas e castas, reprodutoras castradas, fadadas, sou eu aqui, a frente de corpos vivos e mortos, sendo a voz do coração de tantas, não vou me importar e nem esperar o sol iluminar minha face, apenas direi o que deve ser dito por todos em alto sentimento em seu total conteúdo lógico. Escutem-me, e faz silencio, dizendo shhhhhhhhhhhhhhhhhh , e ela retoma: tantas, tantas que não sei contar, da nascimento ao fim, apenas respiraram uma só vez e respira fundo, sem poder soltar o ar com milhões de sonhos e palavras, findaram suas historias. Direi então enquanto o ar me resta, das mãos que nasceram para tocar o mundo, sentir o amor em seu suor, o toque delicado e o tato, não só para lavar as roupas imundas, púrpuras, não só para amassar o pão, carregar a água, crianças, fé, mãos que foram feitas delicadas, para tocar, sentir a alma, as cores e texturas do universo, estas mãos, que poderiam acalantar a alma, ( grita de dor ) simultaneamente é mostrado a imagem de mãos sendo decepadas ao fundo nos telões, e Neda continua: Nem mãos atadas, cortaram as cordas levando junto minhas mãos, diz cansada ofegante.
Continua: pés, a luz agora foca somente seus pés, claros e unhas pintadas de rosa. Aos seus pés uma rosa, rosa.
Neda diz: Pintadas, rosas e delicadas, mesmo assim, proibidas, até quanto a delicadeza é pecado, até quando a rosa fere, até quando não sabemos segurar esta rosa, que sustenta tão aromático perfume sobre espinhos afiados, como estes pés, que pisam sobre arames a cada passo, delicados e leves, buscam apenas o caminho mais simples do amor, da liberdade, não precisam ir longe, apenas querem saber que podem ir, não querem pisar acima, não querem subir escadas, querem correr no plano e se sentirem iguais por alguns instantes, infinitos dentro de segundos, eu senti a voz que fez flutuar em leve dança minha rosa, meus pés, me encantei com a possibilidade de caminhar por mim mesma, o balé tocou minha alma e segui com estes pés a direção que ditava minha voz e coração ( outro grito ) e Neda cai ao chão e ela se cala por alguns instantes.
Diz baixinho Neda: ouço ainda, ouço. Escutem comigo a musica, e pega uma caixinha de musica com uma bailarina, gira a corda, coloca a bailarina para dançar, e ouve a musica clássica tocar, com rosto doce e encantador, repete ao fim da musica : ouço. A voz do mundo, dos homens, das mulheres, das crianças, ouço Deus em minhas suplicas, ouço o guerra, a ignorância, a ofensa e o martírio de ser o que sou, ouço que sou apenas uma mulher, ouço que o que digo vale a metade, ouço tudo isso e ainda sim, ainda ouço poesia no existir. Se explode uma granada, e Neda não tem mais sua audição. Esta por vez fica com o olhar fixo no além, imóvel, por instantes, e diz: Ainda vejo o futuro.
Vejo o dia em que a tolerância saberá o limite entre a singela liberdade de ser mulher e querer ofender tantos preceitos, enxergo em pintura nítida o dia em que o útero será sagrado, em que cada coração terá plena consciência que a vida brota de dentro destas terras, cada flor, rosa, espinho, palavra, livro, luz e escuridão, vem daqui ( mãos no útero ), vejo sim. O dia em que não só o véu será colorido, mas a alma feminina terá sua cor estampada em sorriso, em amor, em decência e liberdade, o dia em que o vazo se quebrará para libertar ao mundo as palavras singelas, simples, sem grandes efeitos na humanidade, mas com a alegria de poder dizer, escolher e assim fazer. Vejo a participação em tudo, no trabalho, nas escolhas, na construção de uma nova nação, vejo a voz delicada respeitada , quista e adorada. Vejo então a mulher como mulher e só, sem demais pinturas, apenas realista e retratada em seu superficial intimo, no sorriso e nas lagrimas, vejo o espaço no futuro, e nos becos apertados desta falsa moral, vou buscando pioneiramente sua localização na escala geográfica machista onde descarrego meu ar.
Ar, para respirar, voar, planar os sonhos sobre tanto terror, nas alturas, longe destas mãos que tentam sufocar a vida, os passos, até a intenção. Brado a voz e o pranto como fecho de luz em meio a absoluta escuridão, solitária entre tantas vou a frente e toco o sino que sinaliza a injustiça. Não penso na guerra, não penso na ofensa, não desejo sair daqui, quero minha pátria, quero meu povo, minha origem e etnia, não renego minha origem, apenas desejo que a balança seja medida novamente, pois o peso é forte e minhas pernas não ajustam mais tanta força, vou curvar diante disso, mas de joelhos vou em frente com minha voz, jorrando a esperança entre ruas e vielas, que esta mesma esperança lave o sangue das ruas e leve junto este pudor brutal imposto a estas mulheres.
Neste momento, a falta da audição me foi útil, se antes já não me assustava em meio a tiros e bombardeios, entre as palavras duras destes homens, que igual peso tem, agora tenho o silencio como companheiro, vejo as cores e a desgraça sem som e legenda, não preciso ouvir para saber, entender e compreender o que deve ser feito, basta ver, com estes olhos, não é preciso estar envolvido em meio a tudo, um gesto, um passo, um caminho a ser seguido, sem volta, em frente e a liberdade, que as rosas se despedacem, mas não se calem, preencham o fedor do sangue e tortura com seu perfume, e a luz da esperança me guie e leve a frente, quebre não só barreiras e muralhas, mas desfaça a medíocre instituição que se sustenta em colunas fortes da fé para subjugar a flor do ventre em lama e sangue.
Trago as marcas no corpo, açoitada, marcada, violentada, dilacerada e não recomposta, sou feita de retalhos, sou um corpo a beira dos palmos ( Neda bate palmas em silêncio ) mas ainda sim, estas lagrimas inundam e afogam qualquer fraqueza, e por Deus, tenho forças de seguir em frente a esta caminhada, se o preço for a carne para libertar a alma, estou pronta para tal quitação.
A liberdade tem seu perfume, me seduz, me faz crer que tudo vale a pena, tudo é possível, me faz ser invisível, imortal, me da asas e força, me conduz diante o sacrifício, me leva em meio aos campos de guerra com coragem e retidão de quem sabe onde quer chegar, sem armas e com muitas palavras atravesso multidões, o amargo do fel no paladar não tira o doce do meu dizer, jogo flores em meio a sangue, desato a corda e retiro a armadura apenas com o olhar, não vejo a luz no fim do túnel, pois estou disposta a iluminar toda esta escuridão.
Agora eu vejo, vejo que... ( explode algo , fogo por toda parte, e Neda venda agora seus olhos com um lenço de cor preta ), silêncio por 5 segundos, e diz Neda: vejo que não vejo mais as formas, o horror, a prisão, vejo que não é preciso abrir os olhos para ver, podem cegar o ser em carne, mas vedar a alma que busca a liberdade, não é façanha para mãos humanas, seja qual bruta for.
Arranquem a flor do solo, e suas sementes vão ao vento germinar. Lembro a estes homens que o pilar da fé deles, é o mesmo pilar que sustenta a minha fé, que ruindo minha estrutura, o templo deles desabará. Toliram minha existência, cortando meus sentidos um a um, deixando em sua limitada concepção “apenas “ o útero, gerador de novos homens para serem treinados a continuar a sina bestial de limitar e aprisionar seu oposto, que não é oposto, é parte fundamental.
PALADAR, amargo, doce, azedo, a língua que acalanta e pode ferir, também sente o gosto e o sabor da vida, saboreio o anis, e aprecia o hibisco, o amargo das ervas, o melado da cana, misturado ao gosto de sangue, lábios trancados a espinhos e correntes, arames farpados, o que estes doces lábios poderiam fazer contra brutas mãos que os calam.
AUDIÇÃO, musica, poesia, canções para alimentar o coração e a alma, o canto dos pássaros, o som das águas, a voz dos entes amados, filtro do bom e do ruim, tapados com a rolha da ignorância, por motivos desconhecidos, o que poderia ouvir esta mulher que mudasse o sentido do que foi dito, poderia sim compreender diferente, mas não mudar o rumo da munição já disparada.
OLFATO, o jasmim do campo, a terra molhada da chuva, o perfume das rosas, o alimento, o suor, o amor, o presságio de bons tempos, o vento que trás e leva este sentido, sufocado em meio a pólvora, a sangue e restos mortais, trancado onde o vento não trás as boas novas, em troco de não farejar a liberdade que clama e brada fora daqui.
VISÃO, cores, formas, brilhos, luz, belezas infinitas, condutora e formadora ao pensamento, a criatividade, a vida, guia do corpo, pedaço da alma, porta de desejos e vaidade, vedada, segada, tarjada e reprimida, tolida a um carrossel de opções em preto e branco, sem vida, sem luz, sem escrita.
TATO, texturas aveludadas, relvas e orvalhos, o toque da pele seja rude ou delicada, o sentimento pela pele, o pressentimento, a dor e o prazer, revelada a química, o gosto por isso ou aquilo, o sentir sensorial, sem necessidade de palavras, o tato diz muito, aqui envolvido com grossa espessura de ódio sem motivos, aprisionando o sentido do amor, do desejo e do querer, tornando a carne um pedaço exposto na dispensa, disponível e imóvel, em seu casulo feito de ódio e ignorância, tecido por homens tementes ao amor sublime, dentro ainda há as cores de todos sentimentos.
CLARIVIDÊNCIA, sentir o que não se vê, acreditar, fé, saber em meio a tantas repressões do que nos espera, ouvir o canto dos anjos, sentir o gosto doce da liberdade, o vento no rosto, a pele do amor, mesmo sem nada existir ainda, predestinar o corpo a sua alma, e a alma a seu encanto, saboreio a tentativa em vão destes homens de queimar este meu sentido, pois aqui, são águas tão profundas no coração de uma mulher, que jamais nenhum homem voltou ou esclareceu como sentimos tal sentido.
INTUIÇÃO, junto a clarividência, sei o que é, como é, e o porquê de tudo, não vi fotos, não ouvi os rumores, não soube de terceiros, apenas sei, e acredite, sei que tudo sei, por todos os sentidos, caminhei o conhecimento, a sabedoria e a compreensão, nada me trouxe tão longe quanto a intuição, que me ofertou o futuro em amplo entendimento, tantas paginas que não saberia coloca-las em pauta, dom divino ou castigo celestial, carrego o próximo passo meu e alheio dentro do coração, sentido inviolável, único e restrito a alma feminina, sem paredes ou prisões, engloba todos sentidos de tal forma a isolar em universo paralelo minha mente e alma, e fazer com que meus atos sejam convergentes com minha fé.
Este é o sentido de tudo, são tantos, porém me bastaria somente um, minha intuição, de que tudo irá fazer efeito, que as vozes serão ouvidas, que o mundo acordará para paz, que a liberdade seja o básico de qualquer existência, que o poder seja o poder do amor, da admiração e da confiança, meus sentidos apontam para isso, um mundo melhor dentro de cada mundo, um canto melhor dentro de cada universo, pessoas melhores, homens que pensam e ponderam, mulheres libertas felizes, com direitos iguais para que a felicidade seja plena, sinto isso, sei que não será em vão.
Como todo homem tenho no peito um coração, pulmões e diferentemente da anatomia masculina, um par de seios. Um coração forte e blindado, tanto amor e anseio pela justiça que blindou-se a injuria, a infâmia, as palavras rudes, a guerra, aos homens. Pulmões cheios de ar e vida, valentes e hábeis em soltar o combustível de minha voz, que ecoa na mente destes monstros que querem me abalar, parar, impedir minhas palavras que já ditas não voltam mais para os meus lábios, tarde demais senhores. E ainda, meus seios, belos, firmes, sim, sensuais e ainda maternais, gero a vida, o alimento que vem antes do pão e do vinho, multiplico o que tenho e passo autruisticamente para aqueles que acredito um dia serem homens de verdade, os alimento para que mais tarde me chicoteiem em praça publica, mas acredito na vida, na justiça e no amor, creio e tenho plena fé, seios que nutrem o homem, da sua fraqueza e fragilidade, a sua mente em busca de prazer, seios que sustentam a vida.
Sem pés, mãos, sem escutar nada mais, sem ver o caminho tortuoso, mas com minha voz latente e bravia, sigo além de qualquer passo, além de suas portas, além de seu corpo, de meu corpo, vou longe, entro em suas veias, em sua mente, domino sua coragem, sou o medo e a esperança, depende de onde vou ecoar, tremo sua fé, misturo suas frases e calo o injusto, vou além de tudo isso, sei que vai valer, vou em frente, vou à frente, encabeço a fecundação, penetro sua convicção e gero a semente que vai deixar a flor que vai nascer, nascer e nascer, se multiplicar, a flor da verdade, da justiça e da liberdade.
Dentro de meu brado tem um grito mais forte, que vai mudo e seco da alma, que chama por amor, por carinho, por uma delicadeza, que clama por braços e beijos, que deseja a confiança sem pudor, que deseja o desejo, que almeja as cores e o suor, que entrelaça o pecado perdoado ao sonho improvável, que faz a mulher brilhar, que mostra na pintura do espelho o quanto valor tenho, que me faz ser tudo, todas, faz acreditar, ter forças e esperança, que funde as mãos delicadas a palavras firmes de liberdade, de longe todos não tem sentido algum, chegue mais perto de meu pranto e navegue por meus sonhos, angustias e quereres, vai descobrir que apenas sou uma mulher comum, cansada do nada e da opressão, que grita ao mundo liberdade e ao peito amor.
Sorrio agora, de frente ao soldado fiel, armado, valente e forte, crente em sua fé, crente em seu destino de mil ozanas, firme e válido, o paraíso é seu único motivo, enquanto guarda a porta do inferno. Minha alma segue em sua direção sustentando o corpo já morto por tantas privações e extirpações, apenas digo o que acredito, como tantos mais, de peito aberto, sigo ao seu encontro, olho em seus olhos, abro a porta de minha alma, trago de mãos dadas tantas quantas puder contar, mãos dadas, véus coloridos, expressões cansadas e valentes, mulheres de todos os cantos, represento sua fraqueza e se optar, sua fortaleza.
Sinto penetrar em mim, em meu peito, dilacerar meus seios, o golpe covarde, a foice injusta e desleal, ingrata e fraca, sinto estourar e dilacerar minha forte voz, vejo as palavras e sonhos escorrerem em púrpura em meu peito, penso em só uma coisa, não será em vão seu covarde, não será por nada, serei apenas a coluna que sustentará suas ruínas, para que em pé vejam o crescimento e evolução de nossas mulheres em direção a liberdade, caio ao chão, olho firme o que me rodeia, homens do bem tentam me trazer de volta, gritos, multidões passam, e eu fico, desta vez fico aqui, sólida e firme, meu rosto se tinge marcando o ponto x da questão, o rosto belo e delicado manchado pela frieza e covardia de um golpe fatal emitido pela fé? Ou pelo medo de quem a interpreta de forma errada?como for, fico aqui agora em sua eterna memória, ao cortar a flor de meus sonhos, acabará de germinar outros mil sonhos, de onde estiver, quero ver este mundo florido.
Neda, a voz.
Fiz este texto em homenagem a todas as mulheres reprimidas neste mundo, privadas da liberdade e de seus sonhos, em especial Neda, jovem iraniana de beleza impar,que morre em protesto pacifico pró mudanças nos conceitos e leis duras daquele país, no que se refere a valorização de suas mulheres.
Wellington Rudá