Conversa entre tábuas
Este é um dos textos que mais gosto, portanto, só a Deus haverá de agradecer aquele que o concebeu.
Sob um grande galpão entre tantos de uma grande madeireira, abrigavam-se duas pilhas de madeira; a menor delas era toda formada por Mogno*, a outra, bem maior, compunha-se de madeiras-brancas.
Do alto da ruma menor, uma tábua dirigiu-se às outras do maior monte, ao dizer:
— Meus pares e eu nos sentimos importunados com estes movimentos seus; o repouso para nós é justo e necessário, porém, muita vez, é quase impossível fazê-lo, visto que vocês saem e chegam o tempo todo.
Da grande pilha que era composta por tábuas brancas e as suas nuances, superfície sem brilho, algumas retorcidas e outras empenadas, não houve resposta, contudo, após um curto momento, instou novamente a tábua do menor monte, ao dizer:
— Quem sois vós com todo este alarido contínuo, quebrando o nosso sossego? Tudo que sei, continuou a impertinente tábua, é que vós entre todas as árvores da floresta, quando vivas, apresentáveis fustes, ainda que retilíneos, sempre revestidos por grossas e ásperas cascas, logo, derivais de espécimes reles, sem raça definida, e ainda, para que mais em nota fique esta desprezível aparência vossas, basta olharmos para vossos tantos nós espalhados em vossos frágeis e descorados corpos, assim, em nome dos meus distintos pares, exijo satisfação e mudança de hábito vossas. Sabei vós que somos da família das meliáceas, portanto, pertencemos a uma das estirpes que compõem o grupo seleto das nobilíssimas madeiras de lei. Confortavelmente estamos tabicadas, enquanto aguardamos o nosso nobre destino, pois, transformar-nos-emos em mobiliário de luxo; seremos corrimãos e balaústres a amparar as pessoas notáveis; emolduraremos finas estampas, e ainda mais, nos aparatos últimos da morte, estaremos presentes em forma de ricos esquifes, a guardar os mortos ilustres e mobiliando os seus suntuosos mausoléus.
Pobres tábuas brancas! Por serem tão humildes, ainda que delas falasse a eminente representante das madeiras de lei, alguns termos, embora fossem próprios ao mundo das árvores, lhes eram estranhos; por exemplo: fustes, meliáceas, tabicadas, etc.
Diante do inusitado discurso, as poucas tábuas que puderam ouvi-lo, ficaram estarrecidas. Agora sim, por esse grosseiro menoscabo, uma resposta era premente, e quem a deu, foi uma das escórias do monte maior, que com voz rouca e ofegante, voltando-se para a pilha menor, assim falou:
— Tens tu com tuas agressivas palavras, um tanto de razão, pois realmente, não temos distinção filogenética, somos apenas madeira- branca, ou seja, cada uma de nós pertencemos a uma essência florestal de contextura mole; pela cor do nosso lenho, seja qual for ela, nada impomos, antes, a tudo nos submetemos, assim, consideram-nos madeira de segunda qualidade; entretanto, enquanto vivas, em nosso habitat natural, estevávamos, chamávamo-nos de árvores pioneiras, pois sob as ordens da Mãe Natureza cumpríamos a missão de proteger espécimes nobres; para tanto, a seiva em nossos vasos lenhosos fluía rapidamente, promovendo crescimento acelerado de nossos troncos, ou fustes, denominação que tu preferes. Não tivemos cerne, faltou-nos aquele alimento precioso que o compõe — a Lignina — por isso, nosso lenho é frágil; nossas grandes folhas, precocemente, sombrearam tuas tenras sementinhas ao germinar; nossos jovens galhos muito cedo, sofreram com o áspero açoite dos ventos, enquanto os desviávamos das tenras e frágeis plantinhas aos nossos pés. Agora, ao ocaso de nossas vidas, fomos ceifadas; mas graças ao nosso zelo, vós já éreis adolescentes sadios e pudestes dispensar nossa proteção; hoje, juntas, somos restos mortais de uma mesma floresta quando não parcialmente, já completamente extinta... Enquanto vós aguardais a fortuna, tranquilamente empilhadas, nós continuamos com nosso aturado labor. Seremos formas às vigas e às colunas de concreto armado, que sustentarão os lares dos humanos; serviremos de andaime aos operários da construção civil. Arrematando tão longa e confrangida resposta, continuou a tábua branca:
— Nossa faina é bem distinta da vossa, porém, quando somos usadas para a confecção de ataúdes, temos o mesmo fado, mas, ainda assim, somos diferentes, pois nós à sepultura conduzimos as pessoas mais humildes. Em toda a nossa lida, transfixam-nos com grossos pregos, muita vez enferrujados, e tantas vezes nos serram, e não por menos vezes, somos reduzidas a pequenos sarrafos e até a grandes porções de aparas que ao serem queimadas sempre produzem luz e calor, por fim, quando, ao nosso último fim chegamos, de volta às cinzas, ainda podemos adubar o solo que que por pouco tempo nos sustentou.
* Mogno — Árvore da família das meliáceas (Swietenia macrophylla), que se distribui desde a América Central até MT e GO, e produz uma das madeiras mais estimadas para a confecção de mobília.
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