Confissões de um olho d’água
 
 
Um olho d’água deixa aqui as suas confissões com feições daquelas que um rio deixaria...
 
 

Sou aquela nascente que das entranhas da Terra aflorei. Nasci minúscula, não mais que um diminuto e frágil olho d’água; nasci para o inerte pó, em vida reverter, e rever e ter, em seguida, aquelas criaturas a quem dei o direito de viver no grande manancial de águas cristalinas que haveria de formar. Tão logo alcancei a luz à superfície, encontrei meu berço já pronto; tudo que fiz foi correr abaixo a suave colina que me acolhia, ou antes, sem nada escolher, me deixei levar pelo leve declive do solo que estava a me acolher; assim, sem nada impor, e a tudo me submeter, naquele momento, pouco poderia desejar; com isso, senti-me frágil e oprimido, contudo, o pequeno e natural desnível do meu leito e os pequeninos e acanhados afluentes meus — quase que desprezíveis — deram-me algum alento, não obstante, soubesse que ao mar não chegaria, pois qualquer insignificante galho, qualquer ingênua pedra, ou até mesmo uma pequenina folha era capaz de mudar o meu curso; com efeito, a saltar obstáculos pequenos, grande dificuldade sempre encontrava, ainda assim, nisto sempre cri: se o meu curso não tiver fim, e se no final do meu leito há mar, amar esse doce colosso de águas salgadas haverá de ser a minha obrigação... Assim, com alguma persistência, quando não sem nenhuma consequência considerar, fui ganhando coragem, e logo, sem demora, percebi que poderia transformar-me em um torrencial e caudaloso rio. Ao passar pelo meu primeiro verão, as primeiras chuvas deram-me um novo hálito, pois indicaram-me que eu realizaria o meu grande sonho. Pouco tempo esperei, para perceber que em volume e força o meu minguado veio d’água ganhou fôlego, pois uma simples e pequena chuva foi o bastante para me contentar; com isso pensei: se uma tempestade grande, uma pequena chuva pode arrastar consigo, consigo arrastar tudo, que estiver ao alcance das minhas águas... Confiante, fiquei a aguardar chuvas e mais chuvas, para com mais facilidade, transpor a curtos saltos, os pequenos empecilhos que a tolher a minha liberdade estavam. Quando me vi, diante de um enorme penhasco, julguei-me incapaz de suportar tão grande queda, entretanto, ainda que com certo receio, deparou-se-me a chance de gerar um colossal e caudaloso salto que uma vez contido por uma grande barragem, poderia produzir tanta energia elétrica, que se em luz transformada fosse, mais pálida ficaria a própria lua...  Por tanto sonhar com o que poderia realizar, mal pude esperar pela chegada de mais um pródigo verão formado pela força de um grande calor e muito vapor de tantas outras águas que da terra se desprendiam para alcançar os céus. Quando isso se deu, por tão natural causa, sem demora, descobri a minha própria grandeza, com efeito, tudo que fiz foi esperar que a primavera tivesse fim, para que início tivesse o verão seguinte. E mais pensei: quando o que espero, acontecer, não tenho dúvida, surpreender-me-á o meu próprio poder, pois repentinamente, tornar-me-ei possante, imporei minha força, estenderei meus domínios, determinarei meu próprio caminho; aí sim! Nada me deterá, tudo arrastarei, as montanhas ouvirão a minha voz, rugindo ameaçarei os vales, minhas volumosas e doces águas chegarão triunfantes ao meu estuário, assustarei o salgado oceano, adoçando-lhe as águas. Diante de toda essa glória tão sonhada, confesso, sob o ardor da vitória, pavor tive ao pensar que envolto por aquela descomunal quantidade de água salgada, desfeita seria a minha identidade...
Dos sonhos à realidade voltei, depois que alguns poucos dias presenciaram a minha correnteza avassaladora; minha tão desejada glória foi passageira, apesar do volume descomunal das minhas águas durante aquele pródigo e extenso verão, padeci o intenso e prolongado inverno que o sucedeu; assim, quando chegou o outono, com a seca despediram-se da terra as chuvas, quando então, me vi com o meu anterior volume, porém, agora, minhas águas escassas e turvas, mais uma vez em forma de filete, corriam dentro de um leito irregular e disforme. Minha aventura chegara ao fim, mas não sem antes disseminar custo a todos que estavam ao meu redor; foi assim que muitas pedras que sustinham o meu berço, rolaram; as poucas que resistiram conservando-se em seus lugares, perderam suas vestes de puro limo; as árvores, que me franqueavam suas refrescantes sombras, perderam seus galhos, suas raízes foram arrancadas; os arbustos floridos que perfumavam as minhas margens, foram açoitados, lavados e levados pela enxurrada; os pássaros que se banhavam nas minhas cristalinas águas, desabrigados, foram cantar distantes do meu assoreado leito. Desolado, entendi que se me contentasse com uma plácida foz, a voz do mar eu poderia ouvir para sempre; tal pensamento me angustiou, pois soube também, que para fazê-lo, haveria de contar com a ajuda de cada um daqueles tênues filetes d’água — meus fieis tributários — se dispostos e a postos ainda estivem para me ouvir e nutrir. Quanto ao inerte pó, que em vida pude reverter, rever e tê-la em minhas águas, passou a ser o meu objetivo maior.

















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Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 06/01/2020
Reeditado em 07/01/2020
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