UM ANJO-POETA CHAMADO RAIMUNDO!

Raimundo era um daqueles homens simples, com nome de Santo, um daqueles tantos homens de fazimento, lucidez e clarividência, daqueles homens grandiosos que passam despercebidos pela maioria das pessoas.

Raimundo - que era filho do mundo - tinha um trabalho “invisivelmente” nobre. Andarilhava por ai catando desperdícios em sacos de lixo. Recolhia diariamente da cidade em que morava uma enorme quantidade de entulhos, que boa parte daquela sociedade teimava desprezar feito lixo.

Entre as velhas caixas de papelão cercadas por sujeiras e imundices produzidas pelo homem, Raimundo recolhia o lirismo do romantismo de outrora, os cantos não percebidos dos passarinhos, a beleza do nascer do dia (da aurora), a imagem de cristo no crucifixo, e as virtudes das amizades perdidas; essas amontoadas quase sempre no desamor ferido da vaidade e na inversão de valores do agora!

Entre as sarjetas e as valas aberta encontradas pelos caminhos percorridos, Raimundo também recolhia, entrelaçados aos dejetos e esbulhos daquela sociedade, milhares de palavras silenciosas não ditas, e as muitas ditas quase sempre envoltas no perfume de rosas maculadas por mágoas. Ele, que via o mundo com outros olhos, já não mais se assustava com isso. Continuava seu oficio catando e recolhendo tudo com a mesma alegria que, somente os anjos-poeta, desprendem, quando esses desfrutam na inspiração da vida, as metáforas da poesia.

Este herói anônimo, durante décadas, saiu por ai enchendo sua humilde carroça, com os mais belos buques de flores perfumadas de vida: lírios, rosas, gardênias, dálias, margaridas e tantas outras formosuras de pétalas desprezadas no lixo. Entre elas, e restos e materiais servidos, também recolhia dos lixões da vida, o respeito vilipendiado, a coragem menosprezada, a humildade e a perseverança desdenhadas, a tolerância e a fé preteridas; flores desprezadas que até outro dia cintilavam o por do sol das palavras proferidas pelos girassóis amigos.

Como já é sabido, Raimundo não era sociólogo, filósofo, historiador, nem tampouco antropólogo ou "doutor". Nunca ouviu falar sequer de Durkheim, Sócrates ou Michel Foucault, Marc Bloch ou mesmo do francês Lévi-Strauss. Nem mesmo sabia o que era fato social, ética, historiografia, ou imagem cultural. Sequer ouviu falar de oráculo, nem mesmo sobre o Templo de Apolo, Delfos, ou Grécia. Mesmo assim, não se pode negar, Raimundo era um sábio, pois "conhecia a si mesmo". E quantos são os que por ai andam que conhecem a si mesmo?

Sabia que tudo aquilo que recolhia da rua, tudo aquilo que era vilmente desprezado pelo homem, estava longe de ser lixo. Não queria entender o porquê das coisas, mais sabia que tais coisas eram mais que simples achado, eram tesouros de alva porcelana!

Raimundo, talvez entendesse que não era apenas um mero catador de desperdícios, mas um jardineiro de esperança. Por outro lado, alguns bardos que tomavam café nos botecos das esquinas, quando o viam passar entre as brumas do dia-a-dia, enxergavam nele a personificação de um ser angelical, um anjo-poeta com alma de girassol. O que se pode afirmar é que somente ele sabia de fato quem era, e o que tinha vindo fazer por aqui!

Após a labuta, sempre ao final da tarde, Raimundo, como de costume, retornava para sua casa situada no centro de uma enorme periferia da cidade. Durante seu trajeto, o crepúsculo lhe saudava, e logo surgiam para iluminar seu caminho as plêiades de estrelas que amenizavam a escuridão da noite.

Porem, chegando a seu humilde casebre, o trabalho continuava. No fundo do terreno um enorme e perfumado jardim florido o aguardava ansiosamente Lá depositava em suas leras o material diuturnamente recolhido das lixeiras de muitos corações corroídos. O que parecia ser estranho, não era! O amor sempre volta ao amor, muitas vezes, como neste caso, para ser fertilizado e retorne como luz, disseminando suas sementes no céu acinzentado da amarga escuridão que nos habita.

Anos depois, Raimundo se foi. Sim, feito poeta atravessou o grande rio da vida. Feito anjo, ergueu-se a luz divina, a mesma que cintilou sua chegada e fazia luzir sua simplicidade.

Ele que por aqui não tinha nem beira, nem eira, nem estudos, nem família, “morreu anônimo, sem deixar nada”! Pelo menos assim disseram os coveiros, talvez os únicos que testemunharam de fato sua existência, após depositar suas vestes mortais em uma daquelas sepulturas em que se enterravam os esquecidos daquele lugar.

Ledo engano... Raimundo se foi! Viajou para além das estrelas; voltou para casa. Porém deixou por aqui uma maior riqueza: a esperança perfumada, sutil e incandescente que há de germinar sempre no coração dos que teimam em se firma na sombra do caos! Raimundo nos legou seu imenso e rico jardim florido, um canteiro colorido que continuará, mesmo que "invisivelmente", semeando luz, amor neste mundo corroído pela vaidade, um mundo em que se joga no lixo não somente a beleza e o perfume das rosas, o amor e a fraternidade... Mas a própria vida!

Por isso, e por tantas outras “bobas coisas”, é que silenciosamente os convido a saudarmos com três Bravos gritos, esse humilde anjo-poeta chamado Raimundo!

BRAVO! BRAVO! BRAVO!

Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 29/07/2019
Reeditado em 31/07/2019
Código do texto: T6707435
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.