Confusões de Português
Ponho a carga de rapadura no lombo do esperto do meu asno, arria as quatro patas. Parece a sombra projetada do Cristo Redentor pelo sol no chão. Em compensação, retiro a carga, levanta-se feito furacão. Bato a cuia de milho, ele vem em disparada, resfolegando e batendo as patas. Mostra-se feliz com o costume de ter milho, água e capim sem dispensar a menor gota de suor. Por um momento vacilo, deixando-me levar em pensamentos, que a felicidade não é alimento comestível por todas as espécies.
Birrento e rabiando para um lado, invariavelmente para a direita, também acostumou-se com a indolência e malandragem relinchada. Não sei com quem, garantidamente, não foi comigo, mas aprendeu que liberdade, autonomia e independência são fatores trabalhosos, custam as olheiras dos olhos e o sal que escorre pelos vincados da cara. Tornou-se salafrário, preferindo o encosto do barranco, à lida diária no arado. Sinto-me desanimado com essa espécie animal. Só falta querer que eu troque de vida com ele. Humm! Melhor tirar essa elucubração da mente; mas se é isso que ele está pensando, pode tirar o burrinho da sombra, por que não vou fazer isso por ele, nunca. Vai esperando...; querer para os outros, o que não se quer, é fácil demais asno, amigo. Ou amigo, asno.
Quando relincha, parece que debocha coisas do tipo: "prometo resistir a tudo, tormentas, relâmpagos, tufões, até as tentações leves; porém, as safadas, insanas, liberais, impossível. Diante do que ouvistes, manifeste-se já, nesse instante, ou cale-se para sempre!" Sabe-lá o que ele quer dizer com essas patacoadas. Como entender de figuras de linguagem, se nunca sentei a bunda sobre uma cadeira de escola?
Escolhi, pesquisei revistas especializadas no assunto, tirei informações com zootecnistas e veterinários, investi todo meu capital ganho com a longa produção de rapaduras, para finalmente, mergulhar em poço movediço; pois, acabei comprando o asno errado. Meu asno não é um animal irracional, mas um prostituto disseminador de preguiça. Nunca vi coisa igual. Um asno preguiçoso de mente, físico e alma, fracassa o forte operário e mercador. É duro precisar e não ser correspondido. Às vezes passa pela minha cabeça, que asno sou eu; e a diferença é o número de patas, orelhas, rabo, cascos. Quem projetou o mundo, deveria ter feito homens e asnos iguais, sem a menor diferença; pois, tanto um quanto outro, vieram ao mundo para ser produtivo; e não birrento, fazedor de pirraça.
Procurei, procurei e não descobri se o defeito está na vista; ou à vista. Seja onde e como for, a gramática não explica as asnices dos animais. O que sei é que, sem um meio de transporte para eu fazer fazer o deslocamento da mercadoria até o consumidor, admito a falência de meus negócios. Muitos anos jogados fora. Posto na lama. Lançado ao esgoto.
Adeus: é o fim da doce vida doce. Pelo visto, por causa do trauma causado por esse asno empacador, cargas de rapadura saídas desse engenho, nunca mais. Lamentável trocar tudo pelo nada. Nunca passou pela minha cabeça, mas o que era doce ontem, é amargo hoje. E amanhã, como será? Mel e fel. Tentei enganar-me, mas esse asno miserável, mostrou-me a realidade e não outra.